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Vejo no Telegraph uma foto de Ian McEwan, de ténis, calças de azulinhas de linho, panamá branco na mão, numa praia (tem um ar de «vagamente Keith Richards») — ao crepúsculo. Acompanham-no um cavalheiro famoso, de sandálias, e uma senhora desconhecida, enrolada num vestido folgado, esvoaçando ao vento que sopra daquele mar ao fundo. O Índico, descubro a seguir. Coisa fantástica, penso. Só depois leio o texto: trata-se de um momento de pausa & relax, um intervalo nos trabalhos do Hay Literary Festival («a single, broad, invigorating conversation related, directly and indirectly, to the islands’ residents»), que tem uma extensão nas Maldivas, agora que o arquipélago assinala o seu segundo ano de democracia. De repente dou comigo a pensar que iria, sim, iria assistir aos trabalhos.
Nada contra o cinema português (é uma maneira de dizer, uma vez que ninguém é «contra o cinema»). Soube-se hoje que a nova lei do cinema, em fase de consulta pública, agrada muito «ao sector». Não pode senão agradar: mercê de umas taxas a cobrar sobre as receitas das operadoras de telemóveis, dos provedores de internet, das televisões (2% à SIC e à TVI, 3% à RTP — repare-se que a RTP já é, entretanto, financiada pelo Estado), do cabo e, enfim, das «plataformas» & dos média «tecnológicos», as contas apontam para uma arrecadação de cerca de € 80 milhões. É dinheiro. Deste, 20% passa para a Cinemateca Portuguesa, e o restante para o ICA, que providenciará para que seja entregue à produção «de filmes portugueses» e a outras minudências. Não é trágico nem é novidade. O Estado, legislador neste caso, entende que as empresas de média e de telecomunicações têm uma dívida moral para com o cinema português, o que justifica que se lance esta taxa, cobrada directamente, supõe-se — um pouco como acontece com a taxa de televisão & radiodifusão, cobrada através da EDP (o que tem levado algumas pessoas a mudar o seu fornecedor de energia, preferindo a Iberdrola), mas depois de analisados os relatórios e contas das empresas, o que vai um pouco contra o sistema do utilizador-pagador, mas enfim, cada critério com a sua argumentação moral. Como disse, não é trágico — as empresas de telemóveis já fizeram saber que, sendo assim, aumentarão os preços no consumidor (que não é utilizador-pagador). É um financiamento público, e os representantes «do sector» já lembraram que desta vez é preciso, mesmo, cobrar (o Estado revela uma ineficácia geral e contumaz quando lança taxas semelhantes, aviso-vos — veja-se a cobrança da percentagem das receitas de publicidade das televisões, para afectar «ao audiovisual português»). Não é trágico. Mas, como se trata de dinheiros públicos, convinha que o ICA e a Cinemateca tornassem evidentemente públicos os seus contratos e apoios, ou seja, gostaríamos de saber como é aplicado esse dinheiro público. O ICA faria o favor de publicar os contratos de apoio à produção ou montagem de filmes, e — repito, como se trata de dinheiros públicos — devíamos poder verificar a execução desses projectos: qual a política de remuneração, os custos de cada filme (nada que fira o pudor), etc. Em Inglaterra, por exemplo, todos os apoios que ultrapassem as £25,000 têm, correspondente, um caderno de encargos que é publicado na internet; pela net podemos também acompanhar a taxa de execução e as contas finais. Nada do outro mundo. De contrário, vai no Batalha, como se dizia no Porto.
De repente começam a surgir números, um a um, num documento e noutro, coisas que são distribuídas «para que vejas». E lembro-me de Mário Soares visitar a Casa da Música com aquele discurso generoso e republicano, «o que é preciso é que as coisas se façam, o dinheiro há-de aparecer». Lembram-se, certamente — é um alto momento de cultura democrática. Se o orçamento anual da Casa da Música pode chegar aos 15, 16, enfim, 17 milhões suportados pelo Estado, pois o dinheiro «lá há-de aparecer» (há quem garanta que são 20 milhões). Aí está o exemplo de uma «instituição independente». Veja-se o caso do seu custo, com uma «derrapagem» de cerca de 250% no prazo de construção e de 193% nos custos. O dinheiro «lá aparece», providenciado pelos bancos, que o emprestam ao Estado, que o atribui à «instituição» e «à obra», e que não aparece no Orçamento de Estado. É que não aparece mesmo. É uma musiquinha.
Há um problema com esta enumeração. Não há negócio do Estado que não tenha corrido razoavelmente mal, das fantásticas PPP que todos pagaremos nos anos mais próximos (e de que já apresentei factura pró-forma aos meus filhos) às intromissões naquilo que não deveria estar a cargo do Estado e, afinal, está. Esse problema chama-se fé. Há quem tenha fé num país que vende computadores de plástico, atum e ferries defeituosos à Venezuela. E há quem, simplesmente, não acredite. Fazendo bem as contas, revendo as fotografias onde um José Sócrates cansado se esforça por sorrir quando Chávez promete que daqui a 20 anos ali estará (ele presidente, o outro como primeiro-ministro), procurando reconstituir o puzzle das notícias venezuelanas (repare-se que estes negócios de ontem já foram anunciados duas vezes desde há dois anos), as trapalhadas da cumplicidade com maus parceiros (Chávez, Kadhafi, etc.) — não se acredita numa linha, numa promessa, numa palavra.
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