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Irrita-me esta onda que condena Roberto por todos os resultados menos bons* dos lampiões. O rapaz é fraco embora valha oito milhões. Mas daí a condená-lo unicamente a ele pelas três derrotas nos últimos três jogos oficiais é resultado de uma grande má-fé — trata-se, inegavelmente, de uma estratégia para esconder aquilo que é evidente para todos e que é o seguinte: o Benfica é o maior, ninguém pára o Benfica, o Benfica vai ser bicampeão, SLB-SLB-SLB, enfim, tudo o que sabemos.
* - Digam lá se não é de uma grande elegância.
De facto, a prestação portuguesa no Mundial de futebol não foi — digamos — elegante. O resultado não é arrasador (uma derrota, uma vitória, dois empates; melhor do que a França, melhor do que a Itália, etc.), uma vez que, na «lógica dos números», a eliminação foi por 1-0 frente à Espanha que viria a ser campeã. Há melhores argumentos, mas os números são estes. Quanto à qualidade do futebol, estamos falados: a selecção fez-se passar por um grupo de medricas assustados de que se salvaram Eduardo (pela natureza do seu posto), Fábio Coentrão (o melhor em campo), Raul Meireles e poucos mais, que nem custaria alinhar. O problema é que foi Queiroz que os mandou jogar assustados. Estive do lado de Ronaldo quando ele se irritou com o treinador, porque era visível a sua indignação contra o «sistema de jogo» e a «medriquice» de Queiroz. «Assim não ganhamos», disse ele — e disse bem. «Perguntem ao Queiroz», disse ele, e disse bem. Mas, para o patriotismo de alforreca do dia seguinte, em conferência de imprensa armada na África do Sul e alimentada pelos fóruns das rádios, e como a maior parte dos jornalistas tinha medo de atacar Queiroz, Ronaldo era o vilão a abater; o vilão que não honrara a braçadeira de capitão, que não respeitara as hierarquias e que, no fundo, queria jogar mais e melhor numa equipa que foi mandada jogar menos e pior.
Havia aqui um problema: os objectivos definidos num hipotético contrato entre Queiroz e a FPF tinham sido cumpridos — ultrapassando a fase de grupos, lá está. Podia a FPF despedir Queiroz se «os objectivos» tinham sido cumpridos? Não. Os resultados eram moderados, mas decentes; só um analfabeto funcional podia querer que a selecção tivesse chegado muito mais longe (é outro assunto). Mas era preciso despedi-lo (para provar que temos condições para sermos «os maiores», «os melhores», etc., além de que a «luta pelo optimismo», um «desígnio nacional», não podia desculpar um homem como Queiroz) e contratar Aragonés, fosse quem fosse, e afastar da selecção a marca de pé frio que Queiroz (uma pessoa simpática, cordial, estudiosa & competente para lidar com futebol de qualidade, mas com uma grande capacidade para perder competições fatais) transporta consigo. O governo e a autoridade do anti-doping ajudaram: ai que Queiroz recebeu-os mal na Covilhã, em Maio. Se a selecção tivesse chegado um nadinha mais longe, quem não teria ido (a pé, em pagamento de promessas, arrastando-se pelo calor) à Covilhã para insultar a autoridade anti-doping? Se a selecção tivesse chegado às meias-finais, então — fuzilar-se-iam os cavalheiros do anti-doping, esses antipatriotas que tinham ousado visitar a nossa querida selecção no seu remanso de estágio e sestas com playstation. Se a selecção tivesse chegado à final, não só se fuzilariam os técnicos do anti-doping como, além disso, o seu presidente todo-protegido seria arrastado pela lama e entregue aos espanhóis para ser esquartejado, além de serem distribuídas vitaminas proibidas a todos os jogadores e às suas famílias — e Queiroz seria, mais uma vez, condecorado. Acontece que era preciso despedir Queiroz — provavelmente com a única justa causa que o futebol conhece: o futebol da selecção foi uma merda. Mas, tolhidas legalmente, as autoridades da bola alinharam no inquérito às caralhadas do seleccionador. Não se despedia por causa do futebol, mas despedia-se por causa do dicionário, dando uma lição de cavalheirismo e boa gramática (olha quem) ao país. Portanto, avisavam-se as famílias de que Queiroz, por detrás daquele discurso habitualmente com ditirambos, mas reunido à volta de sujeito, predicado & complemente directo, era (além de vilão) um perigo para a moral, para a etiqueta e para os seus filhos e filhas. Salvo erro, isto é uma canalhice das grandes. Um simples gravador (basta andar uns tempos, como eu andei, por motivos profissionais) a fazer reportagens de campo, de bastidores, a entrevistar canalhas e caras de pau da bola, para perceber que os eufemismos e disfemismos de Queiroz não só fazem parte dos hábitos (reprováveis) de balneário — e que as brigadas de anti-doping, pelo poder discricionário que detêm, pela ameaça invisível que constituem e, sobretudo, pela protecção de que dispõem, são tudo menos apreciadas (basta ver como detêm um poder que ultrapassa todas as leis comuns). Além do mais, está já praticamente esclarecido que a brigada anti-doping agiu com arrogância, desrespeito pela condição dos atletas e pelo papel do seleccionador.
A FPF (ou uma parte dela) queria despedir Queiroz. Devia, pois, tê-lo chamado a um canto do aeroporto de Joanesburgo, anunciado que ia pagar-lhe a indemnização acordada e ter-lhe dito: «Professor Pardal, o senhor é óptimo a trabalhar o futebol no computador, a perorar sobre métodos de treino, sobre as mónadas de Leibniz ou as tartarugas das Galápagos, mas sobre bola-bola, estamos entendidos, e foi um equívoco». Entendia-se. Mal, mas entendia-se. Em vez disso, medricas, com os cofres controlados e a vontade de fazer asneira como é seu apanágio, cairam na cilada e contribuíram para armar uma sequência de processos, inquéritos, investigações, inquirições e trapalhadas sobre uns «nefandos acontecimentos» de Maio passado (tornados públicos através de uma «fuga de informação» desastradamente ensaiada por um membro do governo), que dão uma bela ideia desta gente que aprecia despudoradamente o poder. Além disso, ensaiam um castigo por delito de opinião, uma vergonha num país civilizado. Mesmo prejudicando (e grandemente) a selecção, ou lá o que é. Transformaram Queiroz no vilão que apetece defender para lá do razoável.
O primeiro-ministro, de novo patriótico, fala do mau serviço prestado ao país. Bom serviço é o que ele fez. Mais tarde há-de recordar-se um célebre domingo de Maio em que o primeiro-ministro tinha regressado acossado de Bruxelas.
Os subsídios que as câmaras municipais atribuem aos festivais de Verão não basta (mesmo se se trata de financiamentos ilegais à música popular) — este retrato da onda de festivais que alastra para animar o Verão português é uma comédia, se não fosse, também, um caso de polícia, de política e de economia pública.
Quando não havia mais nada à mão para atacar Cavaco — não era do grupo de herdeiros da República nem dos seus conglomerados — surgia Boliqueime, a bomba de gasolina, o Sr. Teodoro, os fatos fora de moda, o bolo-rei. Diante das câmaras de televisão, Soares comia o palmier de Campo de Ourique com a mesma desfaçatez com que Cavaco comia o bolo-rei à porta do apartamento, mas a Soares tudo se desculparia. Eu próprio lhe desculpo uma parte, em nome do gosto de viver e da disponibilidade para a malandrice. Cavaco não tinha, para evocar, uma nome de família ligado a um grande escritório de advogados nem aos resistentes ao salazarismo; era o homem de Boliqueime, o professor que bebia TriNaranjus, que comprou um Renault Dauphine com um empréstimo do Montepio, o pai de família tradicional, o contabilista, o homem que envergonharia os proprietários da República caso fosse eleito. Nisto, a direita e a esquerda alimentam os mesmos preconceitos. Tal como alimentam contra Passos Coelho, ou porque o pai era um médico de província (assistia os dispensários em Trás-os-Montes) ou porque vive em Massamá ou Odivelas, tanto me faz. O medo do subúrbio não é apenas classista, com os suplementos de despeito e de horror que os filhos dos antigos tiranos ou terratenentes guardavam para os momentos da verdade; hoje, é o retrato do medo, embora não deixe de ser o mesmo preconceito de classe, de família e de canalha.
Eça de Queirós morreu há cento e dez anos. Uma pessoa devia voltar-se para trás, para a estante, retirar um Eça e ler. Se não tiver um à mão — é uma vergonha.
O segundo golo, o de Laionel, faz inveja ao arco de Almedina, que é de Coimbra, o original.
Enquanto o Filipe NV não inicia o seu blog pay per view, saudações.
A parte dos burocratas, funcionários a termo definitivo e talentos da vidinha estão acima de todos. Sobretudo têm a palavra sempre exacta contra os empresários, essa cáfila.
O J. Ferreira Fernandes escreve como poucos. Desta vez, sobre Josefa, 21 anos, «estudante de Engenharia Biomédica, trabalhadora de supermercado em part-time e bombeira voluntária». Josefa morreu a combater um incêndio. Devia ser manchete de todos os jornais – não apenas pela sua morte, mas também pela sua vida inteira, «estudante de Engenharia Biomédica, trabalhadora de supermercado em part-time e bombeira voluntária». Obrigado, FF.
[Via Conquilhas]
Foi o José Eduardo Agualusa que mo apresentou há anos – a ele e aos seus livros, de que naturalmente elejo Vou Lá Visitar Pastores, Os Papéis do Inglês e a poesia reunida em Lavra. Depois, entrevistei-o – uma hora de tv no defunto Ler para Crer. Retive uma imagem: a do homem do deserto, cruzando a solidão do Namibe (Moçâmedes), falando com solitários, albergando-se em acampamentos de mucubais. Mais tarde servi-me de duas ou três imagens dos seus livros, para livros meus. De vez em quando, assistia a diálogos curtos entre Ruy Duarte de Carvalho e José Eduardo, de Angola para o Brasil, de Angola para Portugal. A sua seriedade absoluta intimidava, era feita daquele raríssimo orvalho que alimentava a Welwitschia mirabilis, a planta do deserto. A sua morte colhe-nos em pleno Verão sem tempo para homenagens que não sejam a de procurar os seus livros na estante.
Há uma palavra a dizer ainda: a André Jorge, o editor da Cotovia. A Cotovia publicou os seus livros com uma notável fé, apoiando o seu autor, nunca lhe negando espaço no catálogo. Devemos a André Jorge, editor e amigo pessoal de Ruy Duarte de Carvalho o conhecimento de uma figura fascinante da nossa língua e da nossa memória de África.
Salvo erro, não emiti uma opinião sobre o Freeport – acreditei que era assunto da justiça; hoje estou convencido de que a justiça andou mal, que o PGR meteu os pés pelas mãos e que a trapalhada não se resolve. Mas há, no post do Tomás, um pequeno, ligeiro equívoco: que uma larga maioria de portugueses achem bem «que José Sócrates não tenha sido acusado» e que «apenas 27.2 %» vejam «com bons olhos uma acusação ao primeiro-ministro» – não aquece nem arrefece o que tanto eu como o Tomás sabemos que está verdadeiramente em causa. Já quando às outras percentagens («81,5% é de opinião que devia ter encerrado há mais tempo, enquanto 86,5% acha que devia haver um prazo limite para se concluir uma acusação»), ó meu amigo, mas quem no seu perfeito juízo não queria que fosse exatamente assim? O problema é que os vereditos, em países civilizados, não vão a sondagens. E acontece que a opinião pública não é propriamente o fiel da balança quando se trata da lei.
Vamos lá. Andaram um ano a arranjar coragem mas valeu a pena. Está aí uma onda anti-Bolaño (tão ridícula como a onda absolutamente-Bolaño, concordo). Distingo desta «onda» o texto de Sérgio Lavos sobre O Terceiro Reich, a que mais tarde voltarei. A questão é outra, e não merece grande espalhafato.
Conheço-os há muito tempo. Nunca leram O Nome da Rosa ou O Pêndulo de Foucault porque eram romances impingidos pela máquina infernal do marketing das editoras. Que a máquina infernal os leve a comprar iPhones e iPods, arroz basmati ou tofu banhado de espermicida, isso compreende-se. Mas um livro, foda-se. Umberto Eco era bom, era, enquanto semiólogo, vá lá, e estudioso da estética medieval – mas um italiano do Piemonte que de repente escreve um par de romances acompanhado de lançamento internacional, isso só se deve à máquina infernal. Dão-lhes um livro de 1062 páginas? Isso não, um tijolo que pode estragar-lhes a digestão (devem ler grandes merdas, devem), puríssima e elevada, cheia de águas fosfatadas. Ficam cansados às primeiras páginas, coitadinhos (é o cérebro – o fosgluten não lhes chega em tempos de ressentimento), não estão para isso, e ainda por cima a máquina infernal dá-lhes forte no discernimento. Mas o problema é Bolaño.
O chileno aborrece-os. Em primeiro lugar riu-se das fantasias latino-americanas (lá vai Macondo, lá vão os Tarahumaras), não fez a revolução e desconfia de Gabriel García Márquez, tanto como de Octavio Paz, a maravilhosa esfinge. Em segundo lugar, gostava mais de rock do que de charangas e orquestas de marimbas. Depois, não foi convocado para nenhuma das legiões em combate, ou porque andava mal vestido, ou porque trabalhava para a família e pensava no futuro dos filhos. Pelo meio, gostava mais de Borges (a quem imitava, sem pudor e sem despudor) do que de falangistas de ambas as mãos. Há gente que fica incomodada porque Bolaño, em 2666, «estava sempre a descrever sonhos»; ora, uma pessoa, naturalmente sóbria, culta, equilibrada como um paxá, detesta sonhos. Naturalmente, o que é preciso é acção, acção demolidora, luz do dia, espinafres, função clorofila às horas marcadas e pouco incómodo. Assim, sim.
Um ano de ressentimento custa a curar. Ainda a Quetzal não tinha lançado 2666 e algumas das nossas melhores almas já manifestavam a sua preocupação. Muitos deles não se tinham dado conta de que já havia duas edições de Roberto Bolaño no mercado (Nocturno Chileno, publicado pela Gótica; e Os Detectives Selvagens, da Teorema), mas o pormenor passava. Confundir a operação de entusiasmo (cujos custos de marketing, o infernal marketing, vale a pena dizer, foram dez, vinte, trinta vezes menores do que qualquer romance de hipermercado ou uma estreia de uma locutora de televisão) em redor de 2666 com uma poderosa acção de marketing infernal – só mesmo por distracção e ignorância. Mas aceito o pecado. Fiquei entusiasmado com o livro; correria, de novo, os riscos que – como editor – corri. Maiores do que alguma vez os críticos anti-Bolaño correriam por que livro fosse (alguns deles não correm, nem andam, nem estão parados). Corri esses riscos porque fiquei perdido pelo livro. Isso já não se entende.
Que uma pessoa leia um livro e o deteste, eu defendo que se deve levantar da mesa, do sofá, da cama – e condená-lo à poeira. Que um pobre chileno morto seja queimado em efígie só porque um bando de malfeitores ficou entusiasmado com um livro (ou dois, ou três, ou os que hão-de vir), e isso é motivo de desconfiança, só dá uma ideia do ressentimento banal.
Mas o mais penoso é ver como almas simpáticas de repente – à falta do chileno morto – procuram um inimigo a abater, um culpado dos seus livros. Porque tem de haver um culpado, uma mão invisível. Esta mania do Bolaño tem de ter um culpado. A ninguém ocorre, a nenhuma cabecinha, que o chileno – enquanto estava vivo e bebia – apenas escreveu esses livros (não gostar deles, já o disse, é uma coisa; fazer de virgem literária é outra) e não conspirou para minar a sagrada estabilidade das suas digestões. Bolaño é odioso porque os jornais falaram dos seus livros e porque muitos leitores o leram e se surpreenderam? Não é grande novidade nas nossas províncias. Mas deixem o homem em paz. Guardem o Index para mais tarde.
© Alexandre Almeida, I.
Lembro-me de Mário Bettencourt Resendes nesta semana de morte. Não sei se a vida tem um preço, mas creio que não – ou porque o seu é demasiado elevado ou porque a vida não está à venda. Mas lembro-me de alguns gestos seus no velho jornal da Av. da Liberdade. E lembro-me de como mencionou que o diretor de um jornal nunca precisava de deixar de ser um cavalheiro. De como o diretor de um jornal devia defender a liberdade de Imprensa, fosse qual fosse o governo. De como devia ser culto. De como devia ser honrado. De como devia manter a sua independência. De como devia ser tolerante. De como devia ser inteligente. À sua maneira, tentou que o ‘Diário de Notícias’ fosse um espelho de tudo isso. Eu gostava do Mário Bettencourt. Era um ‘gentleman’, o que diz quase tudo.
[Na coluna do Correio da Manhã.]
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