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«Se nos compararmos, perdemos em quase tudo: na poesia, na novela, na viola de gamba, na saúde oral e no tamanho dos narizes.»
Luís Januário, no A Natureza do Mal.
Caro João: nada contra Jorge Barreto Xavier. A questão não se prende com o Director-Geral das Artes mas com a prática decidida pelo Ministério das Finanças e à qual Barreto Xavier teve de obedecer — a de taxar um prémio «em sede de IRS». Não é elegante chamar Paulo Nozolino e 1 dizer-lhe que um júri às ordens do Ministério da Cultura e da AICA decidiu atribuir-lhe um prémio no valor de um tanto, 2 organizar uma sessão pública para mostrar à imprensa a entrega do prémio, 3 não entregar o prémio (como seria normal) mas 4 um papel em que se promete uma transferência bancária e, finalmente, no dia seguinte, 5 enviar um email onde se pede uma certidão emitida pelas Finanças para ver se se entrega o prémio, ou não, e 6 avisando que vai fazer-se o corte de 10%. Pede-se uma certidão quando (fazem-no as câmaras municipais, fazem-no certas instituições do Estado) se vai proceder ao pagamento de um serviço prestado; um prémio — uma distinção decidida independentemente do premiado, que não concorreu a ela — não é um serviço prestado. Um prémio desta natureza é atribuído a um artista e não a um contribuinte; o fotógrafo, pintor, escritor, cineasta, seja o que for, é também um contribuinte nos termos da sua relação com o Estado, ou (vamos lá...) com a sociedade, e, nessa condição, é obrigado a pagar os seus impostos; mas receber um prémio não se enquadra em nenhuma actividade sujeita a IRS ou IRC ou a qualquer taxa eventualmente criada pela esponja do Estado. Argumentarás tu, e argumentará certamente alguém mais, que o Estado é capaz de ter criado um regulamento qualquer sobre isso. Lamento muito. O Estado pode criar os regulamentos e posturas que entender para receber o que acha que lhe faz falta; por isso, atira-se aos rendimentos do trabalho ou à riqueza dos contribuintes e à actividade das empresas. Isso toda a gente entende. Mas alterar as regras «a meio», e com a deselegância de um rinoceronte, não me parece que se entenda. Não conheço pessoalmente Jorge Barreto Xavier, mas conheço o seu trabalho. Como funcionário do Estado limitou-se a proceder como o Estado exige; não tem, pois, responsabilidade directa neste assunto. O Estado é que confunde «uma distinção a um artista» (que tem um valor pecuniário) com «pagamentos a entidades ou indivíduos com dívidas fiscais». E, portanto, como é de sua natureza, desconfia de toda a gente.
Finalmente, uma nota: acho nobre e superior defender-se um amigo, como tu fazes em relação a J. Barreto Xavier. Independentemente do que escreve Paulo Nozolino, e como conheço as obrigações dos departamentos do Estado, não critiquei J. Barreto Xavier; apenas mantenho que não se pode — como tu largamente sabes — confiar no Estado. Infelizmente para J. Barreto Xavier.
Alguns comentadores insistem, insistem, repetem, repetem permanentemente até se convencerem de que é mesmo verdade: falam de uma «Alemanha fria, oportunista, calculista» e hoje ouvi mesmo mencionar o «futebol alemão» como «eficaz mas sem alegria». Coisas que se desfazem num instante: 4-0, 4-0, 1-0, etc. (e um mau resultado, sim senhor). Quanto à alegria, eu vi o riso aberto de Müller, de Sami Khedira, de Schweinsteiger, de Miroslav Klose, de Podolski, de Mesut Oezil – que não me atrevo a dizer que estavam tristes. Triste foi o futebol da Argentina e do Brasil, que fazem futebol «criativo». Tristeza – e eu acompanhei-a, porque era uma guerra contra o destino – foi a do Paraguai, o país historicamente mais derrotado e maltratado do «cone Sul» (sobretudo por brasileiros e argentinos). Mas temos de os ouvir repetir a coisa até à final, suponho.
Claro que era a Argentina, mesmo depois da festa antecipada — mas mal comandada, como se sabia. Assim, não corremos o risco de Maradona se despir em público nem de o outro cavalheiro nos oferecer o triste espectáculo da sua sodomia. Estamos salvos, ainda por cima pelo bom futebol da Alemanha. Aprendam.
Enquanto isso, o uruguaio Abreu, el loco, diz o suficiente para percebermos a sorte que lhes caiu no relvado: «Como la historia manda, vamos a seguir buscando.»
Absolutamente isto. Rui A. Araújo sobre a assim chamada, enfim, imaginemos, perdão, literatura, vá lá, transmontana (LT). «Na LT evocam-se as gentes rijas e sofredoras, as casas humildes de virtude, os solares alegretes de pasmar e fantasiar, e, mais do que tudo, a paisagem: os socalcos do Douro (degraus de gigantes!), a neve do Barroso (açúcar dos deuses!), as amendoeiras de Freixo (jardins do Éden!). A Terra Quente é maravilhosa — porque é quente; a Terra Fria é espantosa — porque é fria; as zonas moderadas deslumbram pelo sóbrio equilíbrio climatérico! É assim Trás-os-Montes na LT. […] A LT faz pior: cultiva a pieguice, o bairrismo, o revivalismo, o provincianismo, o bucolismo, o saudosismo e, mais grave, o analfabetismo. […]»
Sim, eu também gostava que o Gana seguisse em frente; mas também gostava que o Uruguai fosse às meias-finais. Gosto de Oscar Tabarez; tem a figura típica do uruguaio como eu o conheço (aliás, tem o rosto do uruguaio mais uruguaio que conheço, o meu amigo Mario Delgado Aparaín). Só um uruguaio do mundo podia dizer, no final do jogo, com aquele sorriso fatal, ao canto da boca (desculpem-me os argentinos, mas é o sorriso fatal, ao canto da boca, próprio de quem aprendeu a ouvir tango e a fingir que não está a ser irónico), «no jugamos bien pero parece que hay algo que nos está empujando, no se que será, debe ser la fuerza de estos muchachos». Ou que promete: «Viene Holanda y, aunque parezca raro, le queremos ganar.» Ou que não se atribui grande importância: «Pusimos lo que hay que poner y eso nos tiene muy satisfechos.» Ou que se refere ao próximo adversário com uma grandeza de guerreiro: «Si digo que es un rival difícil me quedo corto.» Aprendam. Há coisas que têm de se aprender.
[Dedicado aos meus amigos brasileiros com quem falo de futebol, Eduardo C., Arthur D., Lourenço M., Manuel C. P., Wilson F. G., Sérgio A., Marcelo F.]
Queridos amigos: qual é a sensação de ver o Uruguai já para lá da meta, e o Paraguai e a Argentina (ah, a Argentina) quase a dar o salto? Estranho, muito estranho. Às vezes penso que Ijuí, a terra de Paulo Bonamigo (treinou o Botafogo, o Palmeiras, o Marítimo — daqui — ou o Atlético Mineiro) fica só a uns quilómetros de distância de Passo Fundo, a terra de Scolari (e do excêntrico Teixeirinha). Foi aí, em Ijuí, que nasceu Dunga, que não é a coisa mais chata do mundo porque, além disso, tem o futebol de Dunga, essa sim, mais chata ainda. Não sei quem quis repetir a receita do futebol gaúchês, mas há coisas que precisam de um maestro à altura e de intérpretes afinados. O dunguismo acabou. Agora, voltando ao princípio: digam-me lá o que acham da vossa vizinhança.
Paulo Nozolino recusa o Prémio AICA/MC 2009 «em repúdio pelo comportamento obsceno e de má fé que caracteriza a actuação do Estado português na efectiva atribuição do valor monetário do mesmo». O Estado está habituado a mudar as regras quando lhe convém e como lhe apetece, independentemente dos compromissos assumidos e publicados. «Nunca, em todos os prémios que recebi, privados ou públicos, no país ou no estrangeiro, senti esta desconfiança e mesquinhez. É a primeira vez que sinto a burocracia e a avidez da parte de quem pretende premiar Arte. Não vou permitir ser aproveitado por um Ministério da Cultura ao qual nunca pedi nada. Recuso a penhora do meu nome e obra com estas perversas condições. Devolvo o diploma à AICA, rejeito o dinheiro do Estado e exijo não constar do historial deste prémio.» Primeiro, na cerimónia da entrega do prémio (uma distinção e não um concurso), dão a Nozolino um papel dentro de um envelope, onde lhe prometem um cheque; no dia seguinte, pedem-lhe uma declaração fiscal, como se Nozolino tivesse realizado um trabalho para a Direcção-Geral das Artes e o fotógrafo tivesse respondido uma encomenda. É uma novidade absoluta no comportamento do Estado com um premiado – que não pediu para ser premiado.
Termina assim o comunicado de Paulo Nozolino, publicado no site da editora Frenesi, e intitulado «Um Estado que não sabe lidar com homens feitos de uma só peça»: «Nunca, em todos os prémios que recebi, privados ou públicos, no país ou no estrangeiro, senti esta desconfiança e mesquinhez. É a primeira vez que sinto a burocracia e a avidez da parte de quem pretende premiar Arte. Não vou permitir ser aproveitado por um Ministério da Cultura ao qual nunca pedi nada. Recuso a penhora do meu nome e obra com estas perversas condições. Devolvo o diploma à AICA, rejeito o dinheiro do Estado e exijo não constar do historial deste prémio.»
Os chips electrónicos obrigatórios nos carros deviam ser chumbados pela Comissão de Protecção de Dados. Fotografar automobilistas nas portagens das Scuts é absolutamente a mesma coisa. Que seja o constribuinte ou o Estado a pagar o controle electrónico da nossa passagem em, digamos, Paços de Ferreira, é a mesma coisa.
O ministro Teixeira dos Santos apresentou uns Titulos do Tesouro para que os portugueses apliquem as suas economias – no Estado. Faz bem. Os títulos dessa natureza são geralmente subscritos por «pequenos aforradores», pouco dados a manobrarem com as aplicações dos bancos. Infelizmente, o ministro Teixeira dos Santos tem fraca memória. Só isso explica que venha oferecer como o Estado como garantia. Muitos não esquecem o que o Estado e o ministro Teixeira dos Santos, de mãos dadas, fizeram aos Certificados de Aforro. Vou a Orense e já volto.
De repente, o público encontrou um bode expiatório que ultrapassa a própria tentação de sacrificar Carlos Queiroz depois da derrota – aparentemente normal – da selecção nacional na África do Sul. Essa catarse portuguesa encontrou o seu alvo: Cristiano Ronaldo. A televisão explora até ao mínimo frame a possibilidade de interpretar cada palavra sua. Quando é que ele disse que assim não íamos ganhar? Quando é que ele mencionou que deviam perguntar a Queiroz o motivo da derrota? E, de repente, nos fantásticos fóruns das rádios – onde se encontra o denominador comum de todas as banalidades – aí está o culpado. Não o professor Queiroz. Não. Ronaldo. Ronaldo, o miúdo arrogante, o miúdo que ganha dinheiro, o miúdo que tem acidentes com automóveis caros e se expõe a cada centímetro da nossa curiosidade.
De repente, múmias arrancadas ao Além aparecem a exigir temperança ao capitão da selecção – mais do que futebol. E a acusação do costume («Ronaldo não joga para a equipa») como se Ronaldo não tivesse feito um passe, não tentasse um golo, um remate fatal (e isso é jogar para que equipa?), uma jogada, uma queda fingida a nosso favor. E o costume: inveja. Inveja de Ronaldo, da modelo russa com quem se passeia, do talento extraordinário que funciona em todas as equipas (funcionou no Sporting, funcionou no Manchester, funcionou em Madrid) – menos na selecção. E por que não funciona na selecção? Porque «Ronaldo não joga para a equipa».
Este axioma imbecil repete-se até à exaustão sem que uma única voz apareça a defender o mais evidente de tudo: que há equipas que também jogam para Ronaldo (o Manchester, o Madrid) e que há equipas que não jogam para Ronaldo (como a selecção). E que desprezar um talento e um génio absolutamente fatais – como o de Ronaldo – é um atentado contra o futebol e contra a arte que nos faz gostar da bola. O que o Portugalinho queria era o talento de Ronaldo mas sem lhe servir uma bola e exigindo que se submetesse à mediocridade, para não parecer aquilo que ele é: o objecto da inveja nacional.
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