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Ontem estive na Feira do Livro de Peniche. Jantar bom, vento sobre a baía, neblina na Berlenga, as luzes da Consolação, salitre do Baleal – e gente preciosa com quem se fala muito bem, e de quem se ouvem histórias para vários livros. E este momento culminante, na hora da fila dos autógrafos, depois de falar um pouco com o leitor (de passagem: um excelente leitor): «Diga-me o seu nome...» Uma micropausa, antes de responder: «Petrónio.» «Petrónio?» «Sim. Petrónio Augusto.» Não só o visitante de Trimalquião, o ironista de Satiricon — mas, ainda por cima, com desinência imperial.
O «caso Carlos Queiroz» começou há muito tempo e, embora mereça discussão, leva muito tempo a alinhavar. Pessoalmente, acho que Ronaldo tinha razão: «Assim não vamos lá, Carlos...» E não fomos. Mas isso já foi há muito tempo. De modo que é preferível tomar os últimos episódios como referência: de repente, o secretário de Estado diz que há «factos graves» e o presidente da FPF diz que é «um assunto delicado». Factos graves e assuntos delicados são matéria de todos os dias em clubes de futebol. Terá Queirós insultado a equipa do anti-doping no estágio da Covilhã? Só dois meses depois é que o inquérito revela «factos graves»? Só dois meses depois é que o assunto é «delicado»? Se Portugal tivesse ultrapassado a Espanha (ou cilindrado a Costa do Marfim), e já uma glória nacional, o governo e a FPF tinham disponibilizado uma equipa do anti-doping para Queirós praticar insultos e atirar-lhes cascas de tremoço? Ou demoraram apenas dois meses a escandalizar-se? O que teria sido assim tão grave? A suspeita não tem fim, como se sabe. Mas ver tantos espíritos ofendidos dois meses depois, isso sim, desperta ainda mais curiosidade. Factos graves? Um mimo.
As imagens de Duisburgo não merecem muitos comentários. As frases que ficam são suficientes:
O Público está a tornar-se exímio em matéria de títulos e leads de notícias. Em matéria política, mas também «desportiva». Na primeira página do online, e a propósito da vitória do FC Porto sobre a Sampdoria, a entrada (3 linhas) não deixava de lembrar o óbvio: «o FC Porto, terceiro classificado no campeonato», caso alguém fosse esquecer-se; lá dentro, para mostrar que a vitória sobre os italianos, enfim, era desprezível, lá se esclarecia que tinham ficado em 4.º lugar do campeonato italiano, não eram propriamente uns ases. Contraste muito notado com a notícia, quase eufórica, da vitória do Benfica sobre o Mónaco — os que ficaram em 8.º lugar do campeonato francês.
Pedro Mexia abandonou o cargo de sub-diretor da Cinemateca Portuguesa. É pena – independentemente da continuidade de Maria João Seixas. Mexia trabalhou com João Bénard da Costa e era visto como uma espécie de herdeiro de “uma certa visão do cinema”. Poeta, ensaísta, uma das poucas pessoas que, com sobriedade e cultura, pensa a política em Portugal, Pedro Mexia tinha uma vantagem nada negligenciável para o seu cargo: estava longe dos grupos de pressão do “cinema português” e tinha da Cinemateca uma visão que se adequava ao estatuto da própria instituição. Ou seja, não via a Cinemateca como uma “vanguarda” ou um “pátio da atualidade”, mas como um verdadeiro museu do cinema. Esta perspetiva não agrada a muita gente, mas é pena. Porque é a mais acertada e a mais nobre.
[Na coluna do Correio da Manhã.]
O nome das ruas é um assunto tremendo e as comissões de toponímia deviam ser mais escutadas e mais bem preparadas. E também devia ser estudada a quantidade de ruas que muda de nome consoante as mudanças na política. No Porto, o executivo da Câmara não atendeu uma proposta para atribuir o nome de José Saramago a uma rua da cidade (não sei qual). À partida, a decisão é má. Se Saramago fosse propriedade de um partido político, compreendia-se; mas trata-se do nosso Nobel da literatura, e provavelmente irá ficar na história com mais justiça do que qualquer um dos políticos vivos que já têm o nome inscrito na toponímia nacional. Requer-se um certo distanciamento. Não só de tempo. Também de juízo crítico. Eu também não gosto muito de Manuel Fernandes Tomás, mas é a vida.
[Na coluna do Correio da Manhã.]
E, na verdade, o Francisco Mendes da Silva tem toda a razão. Exemplos e fundos não faltam.
Manuel Alegre dispara em todas as direções. Vai descontar 20% dos seus rendimentos para um fundo de auxílio à pobreza, para agradar ao sr. D. Carlos Azevedo. Vai defender uma estrututa militar na CPLP para resolver os problemas da Guiné (isso é que vai ser...), para irritar o dr. Cavaco. Vai defender a proibição de revisão constitucional, para tentar agradar ao BE e ao PS. Podem começar a colecionar as declarações e fazer um quadro comparativo daqui a quatro meses.
Tomás Vasques põe o dedo na ferida a propósito das discussões sobre a revisão constitucional: o país fervilha de constitucionalistas que defendem a Constituição porque passaram anos a estudá-la («anos de estudo da matéria»). Na verdade, devemos temer muito este reaccionarismo dos que acham que não se pode mexer na Constituição, como não se deve mexer nas cores da bandeira ou nas estrofes do pobre hino. A querela em torno dos poderes presidenciais, então, é a mais ridícula de todas — porque já se sabe que, até agora (a esta proposta), a discussão foi encomendada à medida dos interesses imediatos. Os proprietários da Constituição servem-se de uma aura que detêm com abnegação — a de serem proprietários da Constituição, de se recordarem do hemiciclo, dos bravos combates por um artigo ou da negociação por outro, num heroísmo de fantasmas. Mais uma vez, um pouco de estudo do século XIX (e do período 1820-1850) seria da máxima utilidade. Convenhamos: muita gente acha que não se deve mexer na Constituição apesar de a Constituição não ser adequada, porque — precisamente — se mete onde não é chamada. Compreende-se o princípio, o de não se poder proceder a revisões periódicas da Constituição sob pena de o texto perder o que lhe resta de honra, dignidade e princípio. O problema é que os seus princípios estão errados, a sua dignidade está ferida e a sua honra já ninguém lha reconhece. A Constituição foi o produto de um processo revolucionário e as revisões posteriores não lhe retiraram essa marca. Tomás Vasques acha que há uma discussão política & ideológica que vale a pena travar em torno da Constituição e que não se pode reduzir a questões técnicas. Tem razão. Uma das coisas que há a fazer é tentar que o seu texto seja respeitado por todos os portugueses. Para isso, o melhor caminho não é mudar os as opiniões, as orientações políticas e as opções dos portugueses — mas transformar a Constituição num texto útil, mais neutro, de garantias mínimas ou máximas, essencial. Agora, esta ideia peregrina de que os senhores professores se dedicaram a «anos de estudo da matéria» é verdadeiramente para fazer rir. Azar.
Hoje, pouca gente sabe o que é um marco geodésico, para que serve e como se calcula a sua posição exata. Dizemos “milhares de quilómetros” e admitimos que a medida está certa. No século XVII havia dificuldades e Jean Picard resolveu-as a partir de cálculos que ainda hoje nos fazem inveja. Foi assim que chegou aos 6.328,9 quilómetros, o raio terrestre (valor corrigido hoje em 0,44%). Daí em diante, as nossas medições e cálculos foram mais fáceis, meridiano a meridiano, até conseguir uma fiabilidade assombrosa para a cartografia. Além dos trabalhos como astrónomo (uma cratera lunar tem o seu nome), interessou-se pela luz, pela fosforescência dos materiais ou pela ascensão dos objetos celestes. Nasceu há 390 anos, que se assinalam hoje. Picard era um talento poético.
[Na coluna do Correio da Manhã.]
Manuel Alegre considera que o Presidente «não pode deixar de emitir uma opinião» sobre a proposta de revisão constitucional. Manuel Alegre também não pode deixar de emitir uma opinião sobre a realização de touradas, a flexibilidade laboral, a retroatividade fiscal, o verso livre, o aumento de impostos, os resultados dos exames de Matemática, o aumento de insolvências de empresas, Rui Pedro Soares, os limites à pesca de atum, o financiamento ilegal do BPP ou a absolvição de Valentim Loureiro.
Independentemente de saber se é «eleitoralmente útil», «politicamente oportuna», se aborrece ou não os senhores professores e outros co-proprietários, se aquilo que sabemos do projecto é ou não questionável, a proposta de revisão constitucional do PSD acordou o velho regime em peso e coletivamente, de António Arnaut a Alberto João Jardim. Tem, além disso, o mérito de levar o secretário-geral do PS a convocar uma reunião do partido para discutir artigos publicados em jornais. Os parceiros do ancien régime, de Alberto João Jardim a António Arnaut, atropelam-se para denunciar um golpe de Estado, o que é normal nestas circunstâncias (o dr. Vital Moreira já tinha anunciado há anos que a eleição de Cavaco Silva seria também uma ameaça de golpe de Estado constitucional). É estranho, aliás, que o PS proteste contra a «destruição do Estado socialista» e não proteste, em coerência, com uma boa parte das medidas que tomou nos últimos anos. Mas entende-se: não interessa que a Constituição seja respeitada ou respeitável; interessa é que ela decreta, por escrito, o «Estado socialista», independentemente de ser adequada ou não. É o velho espírito das coisas desejáveis transformadas em lei. De repente, uma plataforma de «exigentes constitucionalistas» a que não conhecíamos nem a habilidade nem a disponibilidade, achou que vinha aí o apocalipse.
E, no entanto, é tudo tão simples e razoável: o secretário-geral do PS não quer saber de Constituição nenhuma, e, intimamente, não quer saber para nada do «Estado socialista» que o texto decreta, porque a Constituição, como está, é uma velharia ideológica que resultou do PREC. Como Tomás Vasques explica, com uma clareza mais do que meridiana, e de forma clarividente, o que está em causa é apenas isto: o confronto «permite ao PS um novo fôlego na próxima campanha eleitoral». Mais nada.
Antes de se pensar em remodelação é preciso que certos ministros façam prova de vida, não vá dar-se o caso de alguns deles existirem mesmo.
José Medeiros Ferreira comentou as afirmações de António Costa sobre «o cansaço dos ministros». Recomendo a leitura do post e, sobretudo, de duas frases florentinas deliciosas: «Não sei se irão a tempo.» e «Compreende-se.» O talento está nos detalhes.
Todos os anos, o verão enche-se de cantorias – o país fica transformado num palco. A avalanche de espetáculos e de “programas das festas” alegra todos os concelhos. Há, no entanto, um pormenor nada despiciendo: caso não saiba, boa parte da fatura é paga pelo contribuinte. Ou seja: provavelmente, há autarquias que financiam ilegalmente a “música comercial”. Se isso faz parte dos seus cadernos de encargos, registemos a novidade; se a ideia é providenciar “cultura” às populações, o catálogo nem sempre é bem escolhido e convinha que o fosse; se é um hábito adquirido e mais nada, então é bom começar a fazer a lista desses maus hábitos, para se lançar um programa de desintoxicação, tendo em vista uma boa administração do dinheiro dos cidadãos. É uma maneira de dizer.
[Na coluna do Correio da Manhã.]
O Ministério da Cultura é uma das instituições mais frágeis de qualquer governo. Primeiro, porque em redor da cultura se reúne um numeroso grupo de interessados, mais do que de interesses; depois, porque é difícil negociar com pessoas que se acham no direito absoluto de serem financiadas segundo critérios altamente flutuantes; finalmente, porque esse financiamento vem de um fundo cada vez mais restrito, que não dá para tudo. Daqui resultam muitos equívocos que se acumulam nos arquivos da chamada “política cultural”. A forma de evitar os cortes orçamentais na cultura ficou agora encontrada: €8,5 milhões ficam à guarda do Ministério das Finanças. Se o historial do MC pode levantar dúvidas, as trapalhadas das Finanças ao longo deste ano bem podem deixar-nos aterrados.
[Na coluna do Correio da Manhã.]
Há de vir o dia em que a cultura não significa apenas espetáculo, financiamento, palco – mas há de ser vivida como parte do dia de cada um. Por necessidade. Por absoluta falta. Porque a cultura (a literatura, a música, a pintura, o cinema, o teatro, a língua, a paisagem, as ruínas do tempo, o património invisível) tem uma relação estreita com a felicidade e a infelicidade. Não é apenas um gueto de atividades catalogadas na ‘programação cultural’ – é, também, elegância, espírito do tempo, negação do tempo, memória, transigência. E mesas de café. Esplanadas. Contemplação. Distância. Viagem. Coisas que não se entendem. Coisas sem explicação. Vidas sem geometria. Uma respiração. Uma representação, um eco, um silêncio. Uma inspiração para coisas perfeitas e impossíveis.
[Na coluna do Correio da Manhã.]
O empresário Joe Berardo é um homem imparável. Conheci-o e sei-o bem. Não está para meias palavras, o que é uma vantagem em Portugal. Ontem, por exemplo, e a propósito do seu museu e dos cortes no orçamento da cultura, lançou um aviso ao governo: “Existe um acordo que tem de ser respeitado.” O problema dos acordos é que têm sido rasgados sucessivamente e já ninguém parece lembrar-se do que disse ontem, ou do que prometeu em campanha eleitoral, ou do que anunciou em clima de disparate. O próprio empresário, anteontem, lançou a ideia de o Estado “nacionalizar tudo e começar tudo de novo”. Deve ser ironia, a menos que as suas empresas estejam a salvo ou queira vender baratos, ao Estado, os direitos sobre a sua coleção de arte, por exemplo. Ou é só outro amigo do Estado?
[Na coluna do Correio da Manhã.]
O pior dos argumentos em literatura, gastronomia, asfaltamento de estradas, jogo do berlinde ou política é o patriotismo. Pior ainda, o “patriotismo de conveniência”, já referido no século XVIII por Samuel Johnson, mestre dos mestres: “O patriotismo é o último refúgio dos malandros.” José Sócrates oscila entre o amor e o temor por Espanha, como também se divide entre o populismo nacionalista e o cosmopolitismo de alfaiate. Convinha definir, antes de mais, que o interesse nacional é fazer com que os “nacionais” vivam melhor e de acordo com aquilo que acham justo, correto e melhor para eles. O problema é maior, no entanto, quando nos comparamos – porque ficamos a perder. Em música, literatura, presuntos, costumes ou futebol. E, claro, até em matéria de governantes.
[Na coluna do Correio da Manhã.]
O Ministério da Cultura apresentou uma proposta sobre taxas e isenção de taxas para efeitos de doação de livros. Explica-se com facilidade: ao fim de alguns anos, os editores têm de dar um destino aos livros que estão em armazém. Alguns deles gostariam de doá-los – mas essa doação não está isenta de IVA, o que é um absurdo. Em alguns casos, os editores são obrigados a destruí-los, opção certamente desumana mas que lhes fica mais barata do que pagar ao Estado por vendas não efetuadas. Com esta iniciativa, o governo propõe-se ficar com os livros em excesso e distribuí-los conforme entenda, encaminhando-os para associações culturais, prisões, escolas, etc. É uma ideia a estudar. Em se tratando de livros, toda a gente quer oferecê-los. Pagá-los é mais difícil..
[Na coluna do Correio da Manhã.]
Pelo contrário, o problema não é a carochinha quer ou não querer casar. Convém-lhe é este estado de coisas, em que pode namoriscar conforme as conveniências. E sabe que, no horizonte, há sempre uma possibilidade.
Para os admiradores da diplomacia iraniana, aqui está um bom exemplo; apesar de alguns recuos, o ministro dos negócios estrangeiros da república mantém a defesa dos bons costumes; entre eles está a lapidação.
Livraria na 16th Street, The Mission, San Francisco.
Shakespeare & Co.
Isto sim. É um manifesto contra as livrarias moderninhas, todas brancas, tipo Multiópticas.
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