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Há quem rejubile com os gastos excessivos que os portugueses prodigalizaram neste último mês do ano – entre 1 e 26 de Dezembro foram levantados 2.131 milhões de euros no multibanco e feitas compras no valor de 2.577 milhões pelos cartões de débito. É muito, é pouco? Se acrescentarmos que a maioria absoluta dos programas de viagens para o final do ano no estrangeiro está esgotada, o cenário é mais do que festivo: é preocupante. Lamento desiludir, mas isso acontece sempre a anteceder os períodos de depressão. De onde vem tanto dinheiro? Do endividamento e do cenário de juros baixos, que mudará em 2010. Não é preciso ser economista para perceber o que significa esta corrida idiota ao consumo: ou as notícias sobre a crise são falsas, ou os portugueses apreciam o abismo.
[Na coluna do Correio da Manhã]
Camilo é o nosso grande romancista. E humorista. Romântico, dramático, trágico, satírico, de ir às lágrimas e de chorar de rir. A língua portuguesa rejubila com ele. Os seus personagens são desenhados a fio de prata, iluminando a prosa. O realizador chileno Raúl Ruiz escolheu Mistérios de Lisboa para filmar e quer continuar com O Livro Negro do padre Dinis, outra obra romântica fantástica com um pouco de O Monte dos Vendavais. Manoel de Oliveira transformou Camilo em teatro radiofónico, o que é pouco para o génio absoluto do autor de A Brasileira de Prazins. Talvez o chileno Ruiz compreenda esse talento extraordinário de ficcionista e historiador, que os portugueses ignoram por não ser ‘moderno’, nem ‘francês’, nem ‘cosmopolita’. Por isso é o melhor de nós.
[Na coluna do Correio da Manhã]
Ironia perfeita. Entre os dez livros mais vendidos da década, em Inglaterra (Portugal não tem estatísticas), há dois autores mortos: Shakespeare e Enid Blyton. Ou seja: a celebração da literatura, do talento e da perturbação trazida pelo autor de O Mercador de Veneza; a euforia da inocência, das férias e da primeira adolescência nos livros populares de Enid Blyton, a criadora das aventuras dos Cinco e dos Sete. Ambos os autores transformaram ou modelaram a minha forma de ver o mundo – o pessimismo, a ironia e melancolia de Shakespeare; e a adolescência sem fim dos Cinco. Pelo meio, na lista, há histórias de vampiros, de cretinos e de especulações sobre a felicidade. Subprodutos. Nada como a melancolia, o pessimismo, a ironia e a adolescência. Ou seja, a literatura.
[Na coluna do Correio da Manhã]
Vejam aqui um templo cuidadosamente revisitado pelo nosso Jansenista em serviço nas terras do frio, de Santiago do Chile ao Alto Tâmega.
Explica-se. Há um problema geracional contra o qual não há nada a fazer. O Dr. A foi guitarra-baixo (uma Fender vermelha) numa banda de garagem que animava bailes nos arredores de S. João do Estoril. Era primo de C, que frequentava um grupo de Belém onde se reuniam D, B, E e F. Bom: F era uma estudante de Germânicas, irmã de G, baterista da banda. O que aconteceu foi isto: entre A e F foi amor à primeira vista – casaram, tiveram três filhos e divorciaram-se depois do 25 de Abril. Entretanto, B e C, que terminaram o curso de Direito ao mesmo tempo, foram cooptados para um governo em 1976; um, era chefe de gabinete de um ministro; outro, esteve de secretário de Estado. Passavam férias em Portimão, que na altura tinha recantos aprazíveis. Foi lá que conheceram G, que esteve a um passo de chefiar o partido X na altura. B, foi para o partido Z; C manteve-se no X. B acabou por conhecer F num festival de cinema da Figueira da Foz – eles tinham sido militantes maoístas, da facção dos artistas, e recordaram os velhos tempos em que pediam a cabeça de Marcelo Caetano. «Quem nos viu e quem nos vê», ela ainda teve tempo de dizer. Mas um dos filhos de F e de A, R, precisava de emprego; tinha um Masters americano e entrou num banco, o W, onde ficou até seguir para um governo onde B era ministro (o pai, A, tinha-o encontrado num restaurante de Belém e mencionara o assunto, «ele é esperto e tal»). De facto, A e B nunca se tinham dado muito bem, mas viviam no mesmo bairro, onde J comprara uma casa; J era jornalista sénior e acabou director do jornal T, o que desgostou o pai, E, que continuava «de esquerda» (tinha sido fundador do partido Y, um prodígio revolucionário nos anos setenta, cheio de Reforma Agrária e tal), enquanto a mãe, M, regressava à tradição familiar – casa em Estremoz (virada para a estrada de Fronteira), Algarve no Verão e uma temporada de adultério picante com A, que subiria a ministro mais tarde ou mais cedo. Ele, A, tinha andado no Técnico na mesma altura que o primeiro-ministro, e tinha um barco em Vilamoura, que também era utilizado por H durante a Páscoa – H enriquecera a pouco e pouco, a pulso, e o dinheiro faz a coisa andar por si, viagens, accionista de um banco, enfim. Foi para esse banco que R partiu depois de uma temporada no governo; tinha casado com Q, filha de G e de S. Ah, S lembrava-se perfeitamente de F, tinham passado temporadas no Portinho da Arrábida quando eram duas adolescentes que gostavam de ié-ié, salvo seja, fumavam cigarros baratos nas traseiras da casa de férias, junto da garagem, enquanto se apalpavam a medo. Na faculdade (a de Letras) também tinham estudado juntas. Entretanto, E, que continuava «de esquerda», era advogado de um grande grupo de empresas de construção civil, accionista do banco W. Um dos administradores do grupo tinha sido membro do Coro Popular de Almada durante a revolução e militante da FEC(m-l). A pouco e pouco, e graças ao pai, D, entrou na vida empresarial – e foi assessor político num governo de Cavaco, a quem detestava o corte de cabelo e o desenho dos fatos. Ele lembrava-se muito desses tempos, guardava uma guitarra atrás do armário, junto com fotografias de rapazes de cabelo comprido e de bigode, roupas sujas, «outros tempos», ele dizia, como o avô já tinha dito antes de se despedir há muitos anos, depois de uma merenda de melancia com cerveja preta. Como dizia Camilo, «portanto, lá vamos todos para a posteridade».
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