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Os portugueses de outros tempos dividiam as sardinhas e sabiam que tanta comida devia servir para tantas refeições. Pelas minhas contas, depois de uma pesquisa bibliográfica, o último livro sobre cozinhar com «aproveitamento de restos» é dos anos setenta, e compra-se (vi lá dois exemplares) em Lisboa na Livraria Barateira. António Barreto falava de uma «década prodigiosa» em que os portugueses mudaram a sua vida e compraram electrodomésticos, foram a restaurantes e mandaram os seus filhos à universidade: estavam no seu direito, num mundo que tinha tudo e em que «o tudo era todo nosso». Sou desse tempo, anterior ao paraíso. Havia o assado ao domingo, sabíamos o que era um farnel e não protestávamos muito diante da comida da cantina da escola. Também visitávamos asilos, lares e hospitais. Durante a guerra, a minha avó recriou dezenas de receitas de sopa – são um prodígio gastronómico – e a primeira pasta fresca que comi não foi num restaurante italiano mas na varanda da casa, no Douro, feita por ela (aprendera a prepará-la durante a Guerra). A economia doméstica, desde então, mudou muito e assemelhou-se à «economia pública», com os seus níveis de desperdício, gasto e transfusões bancárias. O princípio a abater era, necessariamente, o da contabilidade salazarista – «não gastar mais do que se ganha», essa moral pequenina. E havia sempre o futuro, essa espécie de ameaça, de incógnita: uma doença inesperada, um filho na universidade, um azar. Antes do paraíso terreno, a vida era muito pequena e modesta. Que me lembre, ao ler os últimos vinte anos da literatura portuguesa (cada um tem as suas fontes), há muito glamour e dívidas aos bancos, viagens ao Índico e a Nova Iorque, casas copiadas das melhores revistas de arquitectura e um linguajar que nos não pertence. Mas não há portugueses modestos, pequeno-burgueses, daqueles que vão à pesca e sonham em passar uma tarde na Ericeira ou em Mira. Todos sonham com iPhone e, segundo me diz o meu merceeiro, já houve quem fizesse reserva de Beluga para o próximo Natal, porque não está para «os problemas do ano passado». Razão tinham os pessimistas de serviço quando Guterres repousava sobre aquele retrato de portugueses a passar fins-de-semana no Algarve e a encher as lojas de telemóveis. Estava escrito.
Os portugueses de antanho tinham depósitos a prazo e juntavam certificados de aforro, precisamente aqueles que desvalorizaram há uns tempos. Cidadãos de economia periférica, as suas arrecadas não flutuavam (julgavam eles) conforme a Bolsa. Por isso, muitos deles (de nós) não percebem o alcance da crise nem imaginam que os seus fundos, resultado de poupanças extraordinárias, parcimónia nos gastos e recusa de excessos, serviam para financiar empréstimos de duvidoso resgate. Esses portugueses, portanto, estão dispostos a tudo para salvar o seu futuro modesto. Ao ouvir Teixeira dos Santos declarar que há falta de liquidez no sistema bancário, eles ouviram bem e traduziram: há falta dinheiro.
José Medeiros Ferreira tem razão na pergunta: «Não será mais barato, e mais eficaz, suspender algumas delas [bolsas] para uma semana de reflexão, e deixar a actividade económica seguir o seu curso, com o papel parado?» Mas a bolsa não pára. Nem a vida. Notam-se festejos a cada anúncio de nacionalização (uma perversidade que se vai pagar caro), porque assim se esmagam os argumentos «dos neo-liberais»; no entanto, a vingança serve-se fria e não a quente. A única coisa que me parece merecer preocupação assistencial são as economias dos cidadãos que não têm culpa dos desvarios em que não entraram. Meia-dúzia de conhecidos fizeram as últimas férias, com viagens pelas Caraíbas e pelo Oriente, com o recurso ao crédito; ainda não estão pagas, pelo que sei, mas fazem planos para as próximas. Os outros, os que não têm culpa dos desvarios em que não entraram, fizeram férias modestas, contaram os cêntimos, seguiram a lei da simples modéstia, geralmente classificada como de contabilidade pacóvia. Também não compraram casas de meio milhão de euros nem reservaram carro a contar com os dias futuros. Deve haver um sentido para isto. Para estes.
O poeta Ramiro Fonte (que era, também, director do Instituto Cervantes de Lisboa) morreu em Barcelona este fim-de-semana.
[Ramiro Fonte em Barcelona,
em Junho deste ano]
PROMESA
Quizá fuesen mejores
Nuestros corazones cuando eran frágiles
Y algún golpe de mar, o la noche de julio
Pudieran abrirles las calladas heridas
Que ahora, y para siempre, llamaremos nostalgias.
Quizá fuesen mejores cuando eran
Cual regatos ligeros o lluviosas tardes
Que mojaban la infancia y partían
Un dominio común; un valle abierto,
Inmensos arenales, aquel balcón
Detenido en la presencia de pulidos geranios.
No eligieron barcos para partir lejos;
Ni la brisa liviana de un verano
Para que los apagase, con su fuego insumiso.
Semejantes a los hombres, desearon
A los árboles antiguos de esta tierra.
Mesa-redonda numa rádio nacional para a habitual revista da semana: eleições americanas, crise dos mercados, etc. E o Nobel. Diz um dos membros do painel: «Não conheço nem sei se está editado em Portugal. É um downgrading do Nobel, atribuí-lo a Le Clézio.»
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