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Hoje, o livro do Dr. António Sousa Homem.

por FJV, em 25.06.08

 

Hoje, quarta-feira, 25 de Junho, pelas 18h30, na Livraria Pó dos Livros (Av. Marquês de Tomar, 89-A), lançamento de Os Males da Existência, com Maria Filomena Mónica e Francisco José Viegas, que falarão sobre as Crónicas de um Reaccionário Minhoto. Estará presente o autor, Dr. António Sousa Homem.

 

«O meu mundo desapareceu nestas três últimas décadas. Era um mundo onde a pasta dentífrica se espremia pelo fundo do tubo e onde os jornais não tinham erros nas secções de palavras cruzadas. O resto, a política, a bondade ou a crueldade dos homens, a vaidade ou a riqueza, o prazer ou o sofrimento são menos do que acontecimentos; a única coisa que aprendemos é que precisamos de alguma inteligência para não nos zangarmos com o mundo.»

 

«O velho Doutor Homem, meu pai, era um madrugador impenitente e dormia seis a sete horas por dia, raramente cabeceando a meio de uma partida de brídge, nas noites de sexta e de sábado, ou durante o obrigatório serão doméstico. O segredo, explicou várias vezes, residia na quantidade de livros aborrecidos que se esforçava por ler e na disciplina que essa leitura requeria.»

 

«Mas a verdade é que o país gosta de malandros. Gosta de pantomineiros e desculpa-lhes tudo. O país gosta de apreciar, nos outros, as mesmas faltas de carácter que o distinguem. Tal como as mulheres dos romances libertinos, que preferiam os canalhas, porque eram mais sedutores embora lhes ensinassem apenas o caminho da desgraça, o país também prefere os pantomineiros.»

 

«A Tia Benedita, o génio ultramontano da família, comparava os Cabrais à sanha demagoga do dr. Afonso Costa. Ela conhecia, à sua maneira, o elemento humano que se encaminhava para a corrupção e para a impostura.Os Cabrais estão em todo o lado, afinal: esclarecidos, cultos, abrindo estradas e dirigindo o progresso – mas temendo muito a liberdade e as ideias contrárias. Não porque, realmente, tenham medo de ambas; mas porque a liberdade e as ideias contrárias são correntemente um empecilho que desvaloriza a sua vontade de mandar.»

 

«A minha sobrinha Maria Luísa manifesta, cada vez mais esporadicamente, algumas perplexidades sobre a relação entre toda a bibliografia acumulada em Moledo e “o histórico” da família. Ela achava, em tempos, que a dimensão da biblioteca deveria afastar-nos da tradição conservadora do clã, até que ela própria (que votava no Bloco de Esquerda) foi escolhida para levar o retrato do senhor Dom Miguel a um artista de Braga, para que o cuidasse e reparasse. Expliquei, sem argumentos de peso, que não era preciso ser de esquerda para apreciar os grandes autores e que nem todos os bons escritores defenderam o comunismo, “o massacre das classes médias” (uma expressão histórica de Eça) ou o encerramento das igrejas. A questão era inteiramente diferente – ou até a inversa: como é que uma pessoa com tamanha biblioteca poderia ser “de esquerda”?»

 

«A mim, pelo contrário, uma casa sem duas prateleiras de bons livros parece-me uma parte do deserto de Moçâmedes (onde tivemos um tio agrimensor). É vaidade de velho e arrogância de um minhoto de antes da guerra civil (a de oitocentos, porque não houve outra). A minha sobrinha acha absurdo que, tendo eu lido alguns livros essenciais, e mantendo uma biblioteca razoável, me não importe de ser um conservador dos de primeira. Sobre isso não sei, mas respondo que acho estranho ela ter lido alguns desses livros, ter guardado o prazer de os escolher e de os guardar, e continuar a votar à esquerda.»

 

«No meu tempo havia toda uma mitologia em redor das ostras, um alimento do Inferno destinado a instantes de devassidão. O meu Tio Alberto, que se apaixonou por uma antiga princesa do Cáspio, achava as ostras um bom ornamento para o litoral galego mas não um dos pecados enumerados pelos Concílios – quanto ao caviar, sim, era chave da antecâmara da perdição. Ele considerava que, sendo o esturjão do Cáspio um sobrevivente entre as espécies condenadas pelo Dilúvio, algum motivo haveria para ser tão prezado. A sua princesa persa era uma senhora delicada e culta que nascera já fora da Rússia, de onde a família saíra nos anos vinte. Quando soube do romance, que durou muito tempo, a Tia Benedita temeu tratar-se de uma bolchevista (elas sabia de História apenas o essencial dos almanaques). O meu tio, bibliómano de São Pedro dos Arcos, não se deu ao trabalho de a desmentir. Remeteu-se ao silêncio, como um amante invejado, e limitou-se a suspirar pelo caviar.»

 

«Diante do vastíssimo número de escritores de hoje em dia, o velho Doutor Homem, meu pai, colocaria a hipótese de chamar pela polícia de costumes, uma velharia já no seu tempo. Mas a intenção fica.»

 

«O velho Doutor Homem, meu pai, comportava-se como um poeta satírico cujo propósito era rir dos românticos. Ele costumava dizer que a choraminguice portuguesa tinha sido transformada em lei pelo constitucionalismo e pelos liberais que tanto assinavam decretos como nos puniam com sonetos. A minha sobrinha sofre bastante quando ouve estas perversidades; ela acha que se deve premiar a “sensibilidade” e valorizar o lado “emocional” da vida. Nunca conseguimos chegar a acordo sobre o assunto. Acontece que a “sensibilidade” e o lado “emocional” da vida são coisas para consumo moderado, como os medicamentos, e que a sua prescrição deve ser consagrada para uso íntimo e estritamente pessoal.»

 

«A minha sobrinha acha que a bondade geral, a sensibilidade e a generosidade nasceram na margem esquerda dos caminhos, ficando a direita reservada para os espíritos tortuosos, para a maldade e para a insensibilidade. Por exemplo, a biblioteca. Com esta biblioteca, extensível em temas e autores como um planisfério elástico, eu não poderia levar a sério nem “o conservadorismo da família”, nem a existência do retrato do senhor Dom Miguel (guardado e protegido no casarão de Ponte de Lima), nem a ideia de que o mundo está razoavelmente bem feito. Eu devia, com algum exagero, evidentemente, esconder-me nas penumbras a lançar bombas contra a família, as classes médias e o senhor arcebispo de Braga.»

 

«Acontece que um dos desacertos com que o mundo tem lutado nasce da ideia de que “o bem” está à esquerda, a quem o futuro assenta como uma luva. Ao apropriar-se do “bem”, fica reservado o “mal” para todos os que não ponderam votar no dr. Louçã – desde velhos ultramontanos (que já não existem) a cépticos que manuseiam almanaques de história pátria dos últimos duzentos anos ou que duvidam das boas intenções da sociedade em geral. E, estando o “bem” em algum lugar, ele não pode praticar-se se não se transportar a bandeira das esquerdas. É, digamos, uma lógica insofismável.»
 

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