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«O velho Doutor Homem, meu pai, tinha pelo romance um desprezo discreto e morigerado. Ele atribuía isso ao facto de, por distracção, se ter fixado na palavra “gentleman” no título de The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman, quando passeava o seu ócio numa livraria de Londres. O meu pai, que tinha lido o Quixote e se compenetrara da importância de Pantagruel, ficou saciado para a vida inteira ao ler Tristram Shandy, como se não precisasse de ler outro livro. Partilhei do seu entusiasmo como se se tratasse de uma Bíblia. Na verdade, li-o toda a vida. E lendo-o durante toda a vida, li nele todos os livros que comenta.
A minha sobrinha acha que eu devia escrever um romance por ter coisas para contar. [...] “Há para aí tanto escritor sem nada para contar”, observa ela, tentando comover-me ou elogiar-me. Defeito de juventude: ela não conhece o poder extraordinário da preguiça, que, não sendo fonte de virtudes teologais, é um vício deste Matusalém minhoto.»
O caso do vidente 'Prof. Bambo', que o CM tem acompanhado, não é melhor nem pior do que os dos bispos da IURD, que cobram dízimos e 'doações' em nome de Deus, mas é um exemplo a ter em conta. As 'vítimas', sem vergonha, queixam-se por 'terem sido enganadas'. O senegalês inventava amantes aos maridos e catástrofes que só ele podia evitar. No fundo, mais do que uma amostra de crendice, é uma espécie do artesanato africano da indústria 'psi' (que inventa depressões e traumas onde às vezes há só a natural dificuldade de viver) ou do chique astrológico ou tarológico, que tem honras televisivas e aparece bem vestido. Nestes casos (astrologia, tarologia, IURD ou videntes), penso que a DECO tem de intervir com urgência. O consumidor, ao pagar a factura, não pode ser defraudado.
[Da coluna do Correio da Manhã.]
«O único membro da família que publicou um livro de versos (de que ninguém leu bastante) teve a sorte de viver num período em que os poetas eram recebidos nos salões e em casa de famílias. O velho doutor Homem, meu pai, que dedicava uma grande parte da sua biblioteca aos poetas românticos ingleses, abominava vates em carne e osso; em seu entender, um poeta não tinha o direito de se apresentar vivo. Essa sua repulsa era conhecida da família, tanto como a sua paixão pela poesia. Conhecia de cor as mais corpulentas estrofes dos nossos poetas do século XIX e recitava-as com trejeitos cómicos; eram famosas as suas interpretações de Guerra Junqueiro e de Garrett, dois altíssimos momentos do seu tom jocoso. O meu avô, que conheceu Junqueiro e privou com o velho republicano, não apreciava o género, mas tantos anos de convívio com ingleses do Douro fizeram crescer nele o sentido da ironia – e da proporção. Ambos consideravam que a poesia de Junqueiro era boa para ensinar métrica e hendecassílabos, mas que se deveria reservar para a categoria das coisas rurais e patrióticas, de braço dado com «Leva o regadinho» e o Hino da Carta.
Para evitar problemas, o tio Alberto preferia escrever opúsculos e artigos sobre história da gastronomia, coisa que o distraía das consultas dos pareceres jurídicos com que pagava as suas aventuras e vadiagens. A ideia de que se era escritor ao publicar-se um livro era mal aceite pelos bibliotecários da família, habituados a conviver com a dificuldade de traduzir o Tristram Shandy, Milton ou os ensaios de Samuel Johnson. Eles não eram eruditos – apenas tinham a noção das coisas.
Essa «noção» perdeu-se hoje em dia. Portugal vive empenhado em pagar direitos de autor a cavalheiros que escrevem uns livros vagamente parecidos com romances, e a senhoras que – se vivessem noutra época – resolveriam o problema com uma ida mais frequente ao confessionário. A minha sobrinha Maria Luísa, a quem contei o achado, pensa que sou um machista empedernido e uma alma penada sem sensibilidade. Ela comove-se facilmente com poetas que desarrumam o dicionário e são considerados humanistas e homens de letras; quanto aos romancistas, tem as suas preferências por histórias familiares que eu li há muito nos romances populares de Mrs. Trollope ou nos folhetins de antanho. A literatura popular enchia as férias de Ponte de Lima e os areais de Moledo e Afife sem cerimónia e sem regras. Eram volumes que não ficariam bem na Biblioteca Geral da Universidade (refiro-me à de Coimbra), mas que ilustrariam qualquer época balnear - liam-se bem, da mesma forma que digeriam bem as cataplanas de Vigo; tinham sabor, vinham ao gosto de todos e tinham marisco em abundância. As senhoras que hoje escrevem romances de família são excelentes namoradeiras e conhecem a maquineta que comanda as emoções – um casamento desfeito, uma família desorganizada, vícios normais para a idade e interrogações chãs e acessíveis sobre ser adulto. Melhor do que isso fez a literatura popular de outros tempos, que nos ofereceu O Conde de Montecristo, A Ilha do Tesouro ou, bem vistas as coisas, alguns dos folhetins avulsos de Camilo, com a vantagem de serem bons em gramática e de não se levarem a sério no mais importante.
Diante do vastíssimo número de escritores de hoje em dia, o velho doutor Homem, meu pai, colocaria a hipótese de chamar pela polícia de costumes, uma velharia já no seu tempo. Mas a intenção fica.»
«Quando fui votar no boletim de voto não estava lá o nome do Pedro Santana Lopes (...) Se lá estivesse o nome de Santana Lopes não votava. Só que no boletim estava PSD. E eu sempre votei PSD», disse Manuela Ferreira Leite. Fez bem Manuela Ferreira Leite e, se eu fosse militante do PSD, votaria nela por afrontar a choraminguice de Santana Lopes.
O António Manuel Venda descobriu uma aparição de Fernando Pessoa.
Se não fosse para ficarmos preocupados, podíamos rir com gosto: Ângelo Correia anunciou que a candidatura de Passos Coelho à chefia do PSD é uma “janela aberta”, que há-de afastar o “mofo” e o “bafio” – e deixar entrar “uma lufada de ar fresco”. É uma declaração e tanto mas, vindo de Ângelo Correia, tanto desejo de ventania dá vontade de rir, o que é uma pena. É como se António Calvário aparecesse a defender a renovação da música portuguesa. Depois da honrosa e notável entrevista de Passos Coelho ao CM, que indiciava uma respiração diferente no partido, o candidato teve o cuidado de receber alguns apoios fatais que podem garantir votos da máquina partidária mas que hão-de aprisioná-lo por largo tempo ao “mofo” e ao “bafio”, enquanto apresentam a conta. É a vida.
[Da coluna do Correio da Manhã.]
Houve anteontem muito burburinho sobre mais um artigo do Dr. Soares acerca da catástrofe que aí vem – e que só acontece porque não o ouviram em devido tempo, como de costume. Tal foi o burburinho que o PS teve de vir a terreiro dizer que os discípulos tinham essas mesmas preocupações do mestre, e que nem era preciso ele avisar – já sabiam as notícias. Soares diz que o voto de protesto (que irá parar ao PCP e ao BE, e mesmo ao PSD, que fala do social) faz falta ao PS nas eleições. Assim compreende-se a reacção do PS. Se o voto de protesto contra o governo dá votos, o partido fará campanha a bradar contra o Código de Trabalho, o esmagamento da classe média, as desigualdades sociais e a reforma da Saúde. Ou seja: estará nos dois lados das barricadas, de braço dado com o inimigo.
[Da coluna do Correio da Manhã.]
«Os livros de história pátria não deixaram de festejar os vencedores e os heróis do Mindelo, do cerco do Porto, de Angra e do teatro romântico. Portugal está cheio de derrotados que raramente mereceram atenção diante da hagiografia dos vencedores. Da desconhecida Dona Teresa, mãe do nosso primeiro rei, aos fidalgos que desafiaram o magnífico D. João II e por isso foram supliciados, passando pelos assassinos de Inês de Castro, por D. Leonor Teles e pelo seu conde, ou pelos vícios bonacheirões do nosso trono — há por certo, aí algumas injustiças no juízo dos nossos contemporâneos, habituados ao heroísmo das vitórias e à queima de arquivos. Ora, de alguma maneira, o retrato de D. Miguel lembra-nos a virtude da derrota.
O velho doutor Homem, meu pai, assegurava que ninguém no seu perfeito juízo sabia mais do que três ou quatro frases do discurso justificativo de José Acúrsio das Neves em defesa do Príncipe, e que provavelmente isso não teria importância porque as opções do passado não podem alterar-se dois séculos depois. O facto é que os homens não fortalecem o seu carácter colocando-se sempre do lado dos vencedores. Há uma estranha serenidade que só se adquire nas derrotas e, algumas vezes, na reclusão que deve suceder às humilhações. O nosso mundo não se compadece com esta filosofia despropositada - quer vencedores e, podendo, faz deles vencedores absolutos.
Por isso, quando enfrento o velho retrato do senhor D. Miguel, na casa de Ponte de Lima, iluminado pela penumbra do Verão, filtrada pelos freixos e pelas cortinas da família, penso que o mundo está bem feito. Não muito bem feito. Mas razoavelmente bem feito.»
Não me assustam necessidades diplomáticas e conveniências de anglicismos mas, depois do Acordo Ortográfico, não acham que não faz sentido alterar os domínios dos emails portugueses para ingleses?
O Dr. António Sousa Homem acaba de publicar o seu segundo volume de crónicas, Os Males da Existência:
«Dobrei já aquilo que se chama a idade do século. O mundo não tem para mim, hoje, passados oitenta e quatro anos, menos segredos do que quando o senhor general Craveiro Lopes foi apeado da Presidência. Há quem pense que a idade é uma vantagem. Seguramente não é. Com o tempo vamos ficando maduros e tranquilos; mas com a idade vamos apenas reparando nos defeitos dos outros e quase nunca nos nossos. Reparo que os meus sobrinhos espremem a pasta dentífrica pelo meio e não pela base. Dou-me conta das mudanças de estação quando os pinhais de Moledo mudam de cor. A velocidade das coisas não me interessa, há muito que me conformei com a sua passagem e a ideia, vulgar e triste, de que há coisas novas para experimentar. Sou um conservador, um botânico e um velho. […]
Aprendi com o velho doutor Homem (meu pai), que a abundância de livros não deve fazer-nos pensar na sabedoria mas apenas na vaidade e no prazer. Não na alegria (que raramente se retira deles); antes, no prazer que se retira do silêncio, da contemplação e da pequena vaidade.»
A A.G.F. relembra, no seu blog, que no dia 3 de Junho faz 7 anos que morreu Manuel Hermínio Monteiro.
Histórias de bibliofilia, no Jansenista.
Manuel Alberto Valente é o convidado de hoje de Carlos Vaz Marques. Às 19h10, na TSF.
Para ouvir aqui.
Trabalhei com ele. Li os seus livros. Almoçávamos de tempos a tempos. Apresentou um dos meus livros. Apresentei um dos dele. Tinha por Alfredo Saramago um grande respeito, uma amizade cúmplice e malandra -- e a gratidão pelos charutos que trocámos. Outro dos grandes homens cultos da minha terra que desaparece. Aos setenta anos a poeira da terra saberá reconhecê-lo.
Maio está a ser muito pesado para mim.
Uma das canções de J. Augustín Lara.
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