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«… Se entro num café, também nunca falha que um dos bêbedos presentes me tome por alvo do seu interesse. Ora se é grande a minha piedade para com os doentes do espírito, e vasta a paciência que tenho com bêbedos, há entre estes últimos um tipo que facilmente me irrita: aquele que insiste em me contar a sua vida e os seus problemas. E que quando recuso ouvi-lo se torna inconveniente. Para depois, agressivo, desatar aos berros, às patadas no chão, e finalmente ameaçador, arregaçar as mangas pronto para o soco.
Devo dizer que só por inadvertência deixarei as coisas chegar a esse ponto. Em regra, quando ele vai a meio da sua biografia, arranjo modo de discretamente me safar. Acontece, porém, que alguns passam com tal rapidez de uma fase para a outra que, quando me dou conta, já eles seguram a garrafa pelo gargalo e exigem que lhes preste atenção ou me racham a meio.
Por isso a minha frequência dos cafés se tornou esporádica e foi sem entusiasmo que, tempos atrás, em Chaves, acompanhei um amigo a uma taberna. Para me convencer tinha ele usado um argumento de peso: tratava-se de “Faustino & Filhos”, a maior taberna de Portugal.
De facto logo de entrada me surpreenderam as dimensões e a particularidade do recinto ser redondo. O tecto é sustentado por enormes vigas de ferro forjado que vão das paredes para o centro, onde pousam numa gigantesca roda do mesmo material. Tudo na construção aponta para os fins do século dezanove, época áurea do consumo do vinho, e da taberna como centro da vida social.
Nessa tarde bebiam ali umas cem pessoas, mas sem aperto se acomodariam duas mil ou mais. Atrás do balcão estão cinco tonéis, cada um para cinco mil litros de vinho. Na adega, escondida atrás de uma porta, guardam-se as reservas: dois tonéis de quinze mil litros cada, e outro, verdadeiro monumento, que leva dezassete mil e quinhentos litros. Todos três tão colossais que, para os lavar por dentro, o pessoal precisa de escadotes.
Surpreenderam-me as dimensões de tudo, como me surpreendeu também a paz que ali reinava. Numa prateleira onde se esperaria a televisão, estava um velho rádio, empoeirado e silencioso. Os grupos conversavam em murmúrios, bebiam calmamente o seu vinho, iam ao balcão buscar mais.
Ouviam-se alguns risos, mas ninguém gargalhava. Faustino Júnior, bisneto do fundador, explicou-me que era sempre assim: umas vezes mais gente, outras vezes menos, nos domingos e dias de festa casa cheia, mas por tradição bebia-se ali em harmonia e sem barulho.
Nos quase cem anos de existência não havia notícia de jamais lá se ter dado uma zaragata. E quando alguém se embebedava, levavam-no discretamente para a rua antes que fizesse distúrbios.
Esse ambiente de desacostumada serenidade e as dimensões monumentais do interior e dos tonéis, tinham resultado numa curiosa alcunha.
– Sabe como chamam cá ao nosso estabelecimento? – perguntou o proprietário. Eu ignorava.
– É a igreja do Faustino.»
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