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Eu digo-te que crise é essa, Eduardo: é a da classe média, que ameça ruir, sujeita ao peso dos impostos, dos salários e dos deveres & obrigações, mesmo antes da queda. Aparentemente, a «carestia» dos produtos acima de mil euros nas lojas gourmet e de telemóveis é o sinal, para o governo, de que as coisas estão melhores do que dizem; mas, na verdade, é o resultado de uma crise mais vasta – em que a classe média, que pensava que ia viver razoavelmente, a beber Gouvyas três ou quatro vezes por ano, se esforçará a partir de agora por explicar aos filhos que «não pode ser», que «não se pode comprar tudo», que «há dificuldades», enquanto essas coisas estão nas prateleiras como sinal de uma inversão de valores. No meio disso, os telemóveis são um luxo imbecil e o Beluga uma excentricidade inexplicável.
Ora, um tipo que fala de inversão de valores é hoje um representante do paleolítico. Passo diante das lojas de telemóveis (para mim, um telefone desses existe para receber chamadas e fazer algumas, tu sabes) e interrogo-me sobre a natureza humana (mas eu devo ser um desses tipos do paleolítico) ao ver preços acima de 300 ou 500 euros numa loja gourmet. Uma pessoa faz contas ao salário mínimo, ao salário médio e ao salário razoável – e esclarece, mesmo sem máquina de calcular, que não pode ser, e que há uma perversidade geral a tomar conta do sistema. Eu não sinto falta do telefone de 1500 euros, mas surpreende-me, como a ti, que se vendam tantos; só pergunto o que essa gente faz com o resto da vida, se querem beber Gouvyas de vez em quando.
António Guterres achava que o país estava bem porque havia telemóveis e férias no Algarve. O país não estava bem; viu-se. Tu perguntas, com ironia, «onde está a crise?», mencionando cem gramas de caviar Beluga a 410 euros cada latinha (bem as vi, ainda a cheirar ao Cáspio). A crise está, precisamente, aí. Vejamos: quanto custa um jantar num «restaurante médio» onde não se confundem os talheres e os guardanapos são apresentáveis? Digamos, 30 a 40 euros em dias de festa. Uma família, digamos, gasta 160 a 200 euros num jantar desses. Um digno homem de uma agência de viagens informa-me, com ar pesaroso, que 40% dos seus clientes «não corporativos» pagam as viagens a crédito – há pessoas que viajam agora a crédito para «os trópicos» e que ainda não liquidaram as viagens do Verão.
O resto é capital bancário. O BCP paga. A Cofidis paga. Alguém há-de não poder pagar. Quase metade do país há-de não pagar. Por isso, a crise é a da classe média, empurrada pela miragem do Beluga a 400 euros e dos telemóveis idiotas a 1500 euros. Que rica imagem, dirá o governo. Que triste imagem, dirá o coro de pessimistas vindos do paleolítico a lembrar que não apenas os almoços não são grátis como, ainda por cima, são de fraca qualidade.
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