Há uns anos, durante o meu primeiro trabalho como jornalista fora de fronteiras (na Alemanha, em Hamburgo, onde decorria o julgamento de Konrad Kujau, o «autor» dos
Diários de Adolf Hitler, que a revista
Stern comprou como verdadeiros), o que mais me impressionou nesse Outono de Hamburgo foi a existência de uma associação designada como «Cidadãos Vigiam a Polícia» e cujo objectivo era identificar as câmaras de vídeo espalhadas pela cidade, publicando depois essa informação. Um pouco de folclore, claro. A Alemanha tinha vivido vários Outonos violentos e a
Fracção do Exército Vermelho (Baader-Meinhof) não era uma ficção que actuava na Ribeira portuense. Um dos principais animadores da associação era um carteiro, que cheguei a conhecer, e que passava férias no Algarve. É verdade que havia um pouco de folclore. Hoje não nos importamos que instalem câmaras em todo o lado. A videovigilância serve vários propósitos, protege-nos de outros, vigia-nos nos elevadores, nas estações de correios, no metro, nas praças, nas lojas de flores. Já não somos nós; ou uma parte de nós é apenas
pixels. Daqui a uns meses, reunindo as imagens das câmaras instaladas um pouco por todo o lado, seremos capazes de reconstituir uma parte substancial dos nossos passos, a forma como descemos as escadas do metro, como nos comportámos enquanto esperávamos a nossa vez numa repartição, o cigarro que fumámos numa paragem de táxi, os jornais que comprámos numa banca, se atravessámos determinada rua, se fomos a um bar e com quem. Por outro lado, as companhias de telefones poderão ajudar-nos a lembrar para que números ligámos nos últimos dois anos. Uma loja de electrodomésticos a quem fornecemos um número de «telefone de contacto» sabe que aparelhos comprámos nos últimos cinco anos e em que dia exacto. Ao verificar as gravações de um shopping, podemos recordar que lojas visitámos. A Brisa pode saber a que horas passámos numa portagem de auto-estrada, se usámos Multibanco -- e pode saber se ultrapassámos os limites de velocidade. Um hotel tem acesso a vários dados pessoais (incluindo cartão de crédito), se decidir utilizar a chave electrónica que usámos para abrir a porta do quarto. A Amazon sabe que livros comprámos nos últimos anos e faz o favor de no-lo lembrar. É fácil reconstituir a nossa vida. Espalhamos memória por todo o lado. Nem precisamos de
hackers. Passamos ao lado de todos os perigos.