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Um jornal americano chamou-lhes Pavarottis. A imagem percorreu o mundo, não sei se nos encheu de orgulho, mas olhámo-la com comoção – a forma como a rapaziada cantava o hino nacional antes de cada jogo chegava-nos de França como uma espécie de reabilitação da pátria, a velha pátria em chuteiras, medricas e faceira, habituada a ver jogadores de futebol a dar cambalhotas mal lhes tocam no cotovelo ou na armação da marrafa.
Tão cedo não os esqueceremos. Nem os seus nomes nem a pequena glória de terem afrontado os All Blacks daquela forma fatal, íntegra, nobre, olhando-os nos olhos, dançando curto (evidentemente) mas sem alguma vez evitar o confronto ou a ousadia. Um ensaio que fosse valia a pena. Uma fuga que ficasse registada seria inscrita no livro das glórias.
O pequeno país que gosta daquele dicionário de indignidades do futebol, tomou-lhe o gosto. No futebol, habituou-se a ouvir coisas como «falta inteligente», «conseguiu um penalty», «brilhante atitude defensiva». Colocado patrioticamente diante da televisão para ver o melhor rugby do mundo, o adepto lusitano encontrou um grupo de almas diabólicas, ou tomadas pelo diabo, com cara de homens, com físico de homens, capazes de correr e de placar, de fugir e de perseguir, de se arrastarem no chão ou de voarem em busca da bola – como há muito tempo não viam no futebol mariquinhas e de efeito fácil, onde toda a gente finge que se lesiona.
Vimo-los todos, jogo a jogo. Jogo a jogo, a pátria pendurava a chuteiras prateadas e sentava-se para ver o jogo da tribo. Jogo a jogo crescia a admiração por aqueles rapazes, desde o primeiro ensaio português em Mundiais, assinado por Pedro Carvalho. Aliás, se o Criador quisesse dar uma prova da sua existência, depois de ter aberto um sulco nas águas do Mar Vermelho – há muito tempo –, teria escolhido o minuto 44 do jogo contra a Escócia, quando um português deixou para trás os escoceses e rasgou pelo estádio fora na direcção de um ensaio fabuloso. Com isso, provaria a sua existência, indicaria que era fã dos Lobos, e mostrar-se-ia justo. Porque nesse primeiro ensaio em Mundiais estava representado todo o esquadrão de batalhadores que se atreveu a enfrentar equipas profissionais. Mas não só: eles enfrentaram também a ignorância dos snobes modernos, a impreparação do cidadão comum e o desprezo dos mariquinhas do futebol.
Foi um gozo puro. Perderam todos os jogos. Nunca uma equipa tão derrotada foi tão comentada no mundo inteiro, com a imprensa neozelandesa, inglesa, americana e sul-africana falando de uma «great story» da «lovely performance of the newcomers». Laurent Bénézech, no L'Équipe, valorizava a coragem e o coração dos portugueses. O mais difícil dos comentadores da ESPN americana não se cansou de distinguir «the great spirit» do bando de portugueses que se atreveu a discutir, metro a metro, o campo que lhe tinha sido entregue.
Há quem ache que isto era pouco. Paciência. Num país de plástico e de vedetas, os Lobos mostraram-nos como, à sua maneira, desvalorizaram os nossos próprios limites e lutaram contra a nossa condição. Eles ultrapassaram o seu destino. Merecem um lugar de destaque nos nossos aplausos.
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