||| A memória não se apaga, mas o esquecimento é indigno.
Eu tive a minha fase de leitor de Miguel Torga. Vivia em Trás-os-Montes, conheci o poeta, passeei com ele na companhia de um dos seus melhores estudiosos e biógrafos, Fernão de Magalhães Gonçalves – o autor do “Manifesto por uma literatura legível”, que havia de morrer mais tarde, só e longe, em Seul –, e tive dele a impressão de um portento. Os torguistas, no entanto, sempre me surpreenderam; não só eram desgraçadamente muito piores do que Torga como tentaram sempre reduzir Miguel Torga à respiração assistida de um regionalista de Trás-os-Montes. Ele era-o, também; mas onde aparecia o brilho luminoso de um relâmpago (o “orfeu rebelde” da sua poesia em luta contra um deus misterioso e pagão), os torguianos viam apenas uma consequência do seu regionalismo. Não sou um leitor da sua ficção; fui da sua poesia. Quem me afastou da leitura de Torga foram os seus “dependentes funcionais”, os guardiães de um país desenhado à imagem do “reino maravilhoso” que já não existia e que viam em Torga (não me interessa muito como ele se via a si próprio) uma espécie de “reserva moral” que vigiaria (pensavam eles) deslizes e cosmopolitismos.
Essa construção moral e política, “o Torga”, era muito inferior à sua poesia, mesmo se o tivermos na conta de um homem que já não era do seu tempo.
Recentemente, reli a sua poesia. Contrariamente ao que aconteceu na minha adolescência, não vi esse “brilho luminoso de um relâmpago” – mas pode pressentir-se nela aquilo que ela foi: uma luta intensa, uma consciência religiosa, uma mitologia. Isso é uma coisa; outra, foi o papel desempenhado ou representado por Miguel Torga ao longo destes cem anos, que agora se comemoraram, e que largamente ultrapassou a sua obra – uma obra do cânone, um nome da história da literatura do século XX.
Parece que houve uma polémica porque o Ministério da Cultura não se fez representar nas comemorações; pessoalmente, acho mal que não o tivesse feito; foi triste. Cem anos de um criador que teve essa importância não são comparáveis a uma efeméride qualquer que esteja “mais na moda”. A função do MC, neste caso,
poderia ter sido meramente representativa, simbólica, circunstancial. Não configuraria um capítulo da “política do gosto” – assim,
foi chocante (além do mais porque Torga sempre esteve próximo do PS). O que estava em causa, neste centenário, não era “um poeta determinado”, mas a importância da sua memória num país que o venerou e o leu tanto. Podemos não gostar de um único verso seu, do seu regionalismo, do seu drama religioso; não importa. Quando a memória se corrompe tão facilmente, não merecemos grande coisa.
[FJV]