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Oncócua, Sul de Angola. [Leandro, a partir daqui começamos em página branca]
Domingo, 6 de novembro de 2005.
– De quantas verdades se faz uma mentira?
A luz, filtrada primeiro por uma rede muito fina, presa à janela, e uma outra vez pelo mosquiteiro, a envolver a cama, deslizava puríssima, numa torrente incrédula, contaminando a realidade com a sua própria descrença. Virei a cabeça e dei com o rosto de Karen. Dormia. A dormir Karen volta a ser jovem, como suponho que era antes da doença (da maldição).
Estamos em Oncócua, num pequeno posto médico gerido por uma organização não-governamental alemã. Oncócua, como tantas outras vilas de Angola, foi desenhada com largas avenidas, para ser no futuro uma grande cidade. O futuro, todavia, atrasou-se. Talvez nunca chegue. Levantei-me com cuidado e espreitei pela janela. Uma enorme montanha, com o formato de um cone perfeito, flutuava no horizonte. Duas mulheres mucubais avançavam sem ruído. A mulher mais alta não devia ter mais de 16 anos, cintura estreita, pulseiras coloridas nos finos pulsos dourados; lembrei-me, ao vê-la, de um verso de Ruy Duarte de Carvalho – os seios: frágeis acúleos na placa do peito. Ruy Duarte escreveu belos versos sobre os seios das meninas mucubais. Compreendo-o bem. Se eu fosse poeta não teria outro tema. A segunda mulher cobria o tronco com um pano verde e amarelo. Mancava um pouco.
– São bonitas, não são?...
Karen estava sentada na cama, o cabelo castanho em desalinho. Disse-lhe:
– Sonhei com a Laurentina...
– A sério? Isso é bom. As personagens começam a existir no momento em que nos aparecem em sonhos.
– No meu sonho ela era indiana. Uma rapariga de cabelo liso, olhos grandes, pele muito escura.
– Não pode ser. Talvez meio indiana, não te esqueças que o pai é português...
– O pai? Qual deles?...
– Boa pergunta. O Faustino Manso era luandense, mulato ou negro. O que a adoptou era português, e o biológico...
– Não pensámos nisso...
– Tens razão, não pensámos nisso. Quem diabo era o verdadeiro pai de Laurentina?...
(Mentiras primordiais.)
Fecho os olhos e no mesmo instante regresso à tarde em que a minha mãe morreu. O meu pai recebeu-me à porta do quarto:
– Ela está muito agitada – murmurou. Tenta acalmá-la.
Entrei. Vi-lhe os olhos acessos na penumbra:
– Filha.
Colocou-me na mão um envelope:
– Chamam-me. Tenho de ir. Isto é para ti, Laurentina. Perdoa-me...
Não voltou a falar. Mais tarde apareceu Mandume. Lembro-me de o ver ajoelhado aos pés da cama, segurando a mão da minha mãe. O meu pai, em pé, de costas para nós. O meu pai, ou melhor, o homem que até àquela tarde eu acreditava que fosse o meu pai. Está agora sentado diante de mim. Tem um rosto seco, anguloso, com as maçãs do rosto salientes. A cabeleira é farta, grisalha, penteada para trás. Deve ter ensaiado a pergunta noites a fio na solidão do seu quarto de viúvo:
– De quantas verdades se faz uma mentira?
Fica calado um momento, o olhar perdido em algum ponto atrás de mim, depois acrescenta com ênfase:
– Muitas, Laurentina, muitas! Uma mentira, para que funcione, há-de ser composta por muitas verdades.
Olhos brilhantes, húmidos. Sorri tristemente:
– Era uma boa mentira, a nossa, uma mentira composta por muitas verdades, e todas elas felizes. Por exemplo, o amor que Doroteia tinha por ti era realmente um amor de mãe. Tu sabes disso, não sabes?
Olho-o atordoada. Levanto-me e vou até à janela. Posso ver dali o pátio iluminado pelo sol. A figueira que salvei, há anos, tirando-a de uma pequena jarra quebrada, numa lixeira, e plantando-a num enorme vaso de barro, está a dar-se bem junto à enorme chaminé em tijolo que divide o pátio. Cresceu muito, e muito torta, como é próprio da natureza das figueiras. A buganvília, ao fundo, já perdeu todas as flores. Janeiro declina. Um mês mau para se morrer, mesmo em Lisboa, onde até no inverno surgem com frequência, desgarrados e sonolentos, como papoilas dispersas num campo de trigo, dois ou três esplêndidos dias de verão.
O meu pai teria gostado que eu fosse um rapaz. Até aos 12 anos, ignorando os protestos da minha mãe, comprava-me calções, e boinas, e jogava à bola comigo. Temos uma ligação muito forte. Tivemos sempre.
– A ilha, papá, como é o tempo em Moçambique, nesta época?
A pergunta não o surpreende. Julgo que se sente aliviado por poder mudar de assunto. Suspira. “Em Janeiro”, diz, “costuma fazer muito calor na ilha. O mar é de um verde luminoso, a água quente, filha, chega aos 35 graus, uma sopa de esmeraldas”. Tira uma moeda do bolso, “Lembras-te?”, eu lembro-me, claro. Seguro na moeda. Vinte reis. Está muito gasta, mas ainda assim consigo ler a data sem dificuldade: “
– Estou aqui a tentar compreender como é que vocês foram capazes de me esconder uma coisa dessas durante tantos anos! Podes explicar-me?...
[1] Choro muito. Choro no cinema, nos casamentos, choro a ler qualquer coisa, eu sei lá, O amor nos tempos da cólera. Comovem-me os desastres ou as alegrias de amor dos outros, mas não me lembro de ter chorado alguma vez em razão dos meus próprios desaires.
«Valeu tudo: tratar um sujeito como predicado, usar um "ç" em vez de dois "s", inventar palavras. O Gabinete de Avaliação Educacional (GAVE) do Ministério da Educação deu ordens para que nas primeiras partes das provas de aferição de Língua Portuguesa do 4.º e 6.º anos, os erros de construção gráfica, grafia ou de uso de convenções gráficas não fossem considerados. E valeu tudo menos saber escrever em português. Isso não deu pontos.»Se era preciso um argumento para repensar totalmente o ensino do Português, não sei se vale a pena procurar mais. Mas uma pessoa fica cansada de dar exemplos. A corporação está bem defendida nos corredores do Ministério. Mas leiam, leiam.
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