Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]



...

por FJV, em 31.05.07
||| Livros em Desassossego.
Sessão memorável, debate, muitos livros novos sobre a mesa, sala cheia, conversa até tarde (ainda está a decorrer, eu é que vim fumar um nadinha para a varanda...). Não sei o que acontecerá daqui a uns tempos à Casa, mas os Livros em Desassossego é uma das coisas que espero que nunca se percam.
[FJV]

Autoria e outros dados (tags, etc)

...

por FJV, em 31.05.07
||| Ainda a tempo.









Daqui a nada, às 21h30, na Casa Fernand0 Pessoa, mais uma edição dos Livros em Desassossego: vai discutir-se o papel dos livreiros e das livrarias no debate com as presenças de Antero Braga, da livraria Lello & Irmão, André Dourado, da cadeia de livrarias Bulhosa, e Jaime Bulhosa, que se prepara para abrir uma nova livraria em Lisboa, a Pó dos Livros. Antes disso, Maria do Rosário Pedreira, a editora da QuidNovi, escolhe três livros recentes que gostaria de ter sido ela a editar e José Eduardo Agualusa, recentemente distinguido com o prémio de ficção estrangeira do jornal britânico The Independent, apresenta o seu novo romance, As Mulheres do Meu Pai. Coordenação, como sempre, de Carlos Vaz Marques.
[FJV]

Autoria e outros dados (tags, etc)

...

por FJV, em 31.05.07
||| Boaventura.
O artigo a que se refere este post foi publicado, também, na Folha de São Paulo, como adverte o Bruno Sena Martins. Está aqui.
[FJV]

Autoria e outros dados (tags, etc)

...

por FJV, em 31.05.07
||| Regras da política.
O que é o centrão? Entre outras coisas é assistir à indignação de Marques Mendes, no parlamento, acerca da intromissão do Estado na vida das famílias, a propósito da «obrigação de declaração das doações realizadas entre pais e filhos e entre marido e mulher» – e descobrir que esta interessante norma tinha sido introduzida pelo governo do PSD.
[FJV]

Autoria e outros dados (tags, etc)

...

por FJV, em 31.05.07
||| PRÉ-PUBLICAÇÃO: As Mulheres do Meu Pai, de José Eduardo Agualusa.









(Os sonhos cheiram melhor do que a realidade.)


O meu pai é um homem de paixões. Durante alguns anos dedicou-se à fotografia e ao cinema. Comprou uma câmara de filmar, Super 8, que levava para toda a parte. Foi por causa dele e do seu entusiasmo, e por causa também daquela velha câmara, hoje minha, que me tornei documentarista. Lembro-me, eu era adolescente, em Lisboa, de Dário armar um pequeno écran na sala de visitas, e de projectar slides, ou filmes, sobre Lourenço Marques ou a Ilha de Moçambique. Num deles estou eu, com pouco mais de um ano, numa piscina, dentro de uma bóia com o formato de um pato, a bater na água com ambas as mãos. Ao fundo, o imenso mar anil. Noutro filme aparece a minha mãe com uma cana de pesca nas mãos. Dário via as imagens em silêncio, saboreando um Martíni. No fim, suspirava:
– Ah, Moçambique! Foram anos felizes. Às vezes sonho com aquele tempo. Depois acordo e ainda sinto nos lençóis o cheiro de África. Quem não sabe o que é o cheiro de África não sabe a que cheira a vida!...
Quando o avião aterrou em Luanda e abriram as portas, parei um instante no cimo das escadas e enchi os pulmões de ar. Queria sentir o cheiro de África. Mandume abanou a cabeça, infeliz:
– Merda de calor!
Enfureci-me:
– Ainda nem pisámos em terra e tu já protestas. Não sabes apreciar as coisas boas?
– Que coisas boas?
– Sei lá, o cheiro, por exemplo. O cheiro de África!
Mandume olhou-me, perplexo:
– O cheiro de África?! Cheira a xixi, caramba!...
Fiquei calada. Cheirava mesmo.

///


A verdade é que não sei ainda se a amo ou se a odeio. Falo de Luanda. A vivenda do general N'Gola fica no centro de um pequeno jardim tropical, com palmeiras, bananeiras, um lago redondo com repuxo e peixes vermelhos. Havia diversas mesas de ferro dispostas ao redor de uma piscina muito bonita. As pessoas conversavam tranquilamente. Bebiam e comiam. À mesa em que nos sentaram estava um jovem empresário – "importo vinhos e bebidas espirituosas", disse-me, ao apresentar-se – acompanhado pela mulher, uma rapariga gordinha, com um rosto perfeito, recém-formada em economia no Rio de Janeiro. Estava ainda um rapaz alto, de ombros largos, que me cumprimentou com alegre irreverência:
– Tia Laurentina, acertei?, a avó contou-me. Houve quem tivesse feito apostas sobre quantos filhos do avô Faustino, filhos desconhecidos, claro, iriam aparecer no funeral. Apareceram dois, você e um militar, lá do Sul...
Devo ter corado. Ele percebeu o meu desconforto:
– O que é isso? Não se zangue. Você faz parte da família. Lamento que não tenha conhecido o velho em vida. Ele era uma pessoa extraordinária. Estamos todos felizes por você ter aparecido. Eu, em particular, que ganhei uma tia tão bonita. Ainda não me apresentei? Perdão, chamo-me Bartolomeu, Bartolomeu Falcato, e sou o filho mais velho da Cuca...
Mandume interrompeu-o:
– Quantos filhos teve o seu avô?
Bartolomeu riu-se. Riram-se com ele o empresário e a mulher.
– Segundo o avô dizia, 18. Sete mulheres e 18 filhos.
– Era um homem africano – o empresário piscou-me o olho cúmplice. – Aqui em África ainda sabemos fazer filhos, não é como vocês lá na Europa. Quem está a salvar a Europa da implosão demográfica são os imigrantes africanos. Os europeus deixaram de fazer filhos. Têm, presumo eu, outras coisas com que se ocupar...
– Quantos filhos tem você?
– Eu?! Só um, mas eu ainda sou muito novo...
– Muito novo? Tens 33, meu camba. Aqui na terra já és cota. – Bartolomeu dizia isto às gargalhadas. – Lembra-te que a esperança de vida em Angola é de 42 anos. Já uma criança que nasça em Portugal pode viver 77 anos. Um angolano de 33 anos equivale a um português de 68. A tia tem razão, enquanto africano tu és uma fraude!
– E você, quantos filhos tem?
– Nenhum, tia. Sou uma fraude completa. Para começar, tenho esta cor, que não me dá credibilidade nenhuma enquanto africano. O mês passado fui a Durban a um encontro de escritores. Havia escritores de vários países da chamada África Negra, além de um americano, um indiano e uma jovem indonésia, por sinal linda de morrer. Alguns escritores não esconderam o espanto quando me apresentei, "Bartolomeu Falcato, angolano". Dois quiseram saber se viajava com passaporte português. A terceira pessoa que me fez essa pergunta, a jovem indonésia, teve pouca sorte. Explodi. Disse-lhe que no meu país só os polícias de fronteira é que costumam pedir-me o passaporte. Ainda lhe perguntei se trabalhava para os serviços de emigração. Ganhei uma bela inimiga, claro. Quer ver o meu Bilhete de Identidade, tia? Leia aqui, onde diz raça, consegue ver? Está escrito branco. Já o meu irmão mais velho, ali naquela mesa, sim, esse, o escurinho, foi classificado como negro. Irmão do mesmo pai e da mesma mãe. Pelo menos da mesma mãe é de certeza...
– Como é então, Bartolomeu?! – Ralhou o jovem empresário. – Vamos lá a mostrar mais respeito pelos cotas!
Bartolomeu riu-se. Dir-se-ia que estávamos numa festa de aniversário, embora eu tenha surpreendido uma ou outra senhora a limpar com o lenço uma lágrima furtiva. Dona Anacleta, não. Presidia à maior das mesas, muito direita, muito digna, comandando as empregadas com a simples autoridade do olhar. Bartolomeu pousou a mão no meu braço:
– Soube que é documentarista...
– Sim, sobrinho, venho sendo.
– Então já temos mais alguma coisa em comum, além do parentesco. Eu trabalho para a Televisão. Aqui podemos dizer apenas a televisão. Só há uma. Tirei um curso de cinema em Cuba. Além disso, escrevo. Publiquei dois romances.
Mandume reparou na mão dele. Não disse nada. Bartolomeu continuou:
– Também soube que pretende realizar um documentário sobre esta viagem que faz.
– Como soube?
– Neste país tudo se sabe. Tenho uma proposta. Talvez lhe interesse...
– Só admito propostas honestas...
– Esta é honesta, tia. Gostaria de filmar contigo, vamos tratar-nos por tu, está bem? Gostaria de filmar contigo um documentário sobre a vida do velho Faustino. Um road movie. A minha ideia seria partir de Luanda, com um bom jipe, e parar em todas as cidades onde ele viveu: Benguela, Mossâmedes, Cape Town, Maputo, Quelimane e Ilha de Moçambique. Entrevistaríamos as pessoas que o conheceram, músicos que trabalharam com ele. O Hugh Masekela, por exemplo, sabias que o velho tocou com o grande Hugh Masekela?...
Eu não sabia. Escrevo estas notas no quarto onde estamos instalados, no hotel Panorama, um edifício elegante, erguido sobre as areias da ilha. Tem o mar à frente e o mar atrás. Através da janela vejo as luzes da cidade reflectidas no espelho preto da baía. À noite, vista daqui, Luanda parece uma metrópole imensa e desenvolvida. A escuridão oculta o lixo e o caos. Penso no meu pai. Quis saber o que achava Mandume acerca da proposta de Bartolomeu.
– Uma completa estupidez! – gritou-me. – A nossa ideia era apenas filmar o encontro com a tua família. Ficamos mais duas semanas, conforme o combinado, e depois regressamos a Portugal.
Tentei argumentar. Quanto mais penso no projecto do meu jovem sobrinho mais me entusiasmo. Disse-lhe que me parecia uma excelente ideia e que me faria bem. Ajudar-me-ia a descobrir o meu pai. E em Moçambique poderia procurar Alima, a minha mãe biológica.
Imagine-se – e se eu encontrar a minha mãe?
– Sim, se a encontrares, o que é que lhe dizes?! – Mandume irónico. – Olha mamã, sou a tua filha. A filha que tu pensaste que tinha morrido no parto...
Irritei-me. Gritei:
– Já estou farta de ti!
Mandume saiu do quarto furioso. Bateu com a porta.
Passa da 1h da manhã e ainda não regressou.

Capítulo 1, Parte I
||| Capítulo 1, Parte II


[FJV]

Autoria e outros dados (tags, etc)

...

por FJV, em 31.05.07
||| Ler.








Em definitivo, Mafalda Lopes da Costa deixou a revista Ler.
[FJV]

Autoria e outros dados (tags, etc)

Tags:

...

por FJV, em 31.05.07
||| O cantinho do hooligan. Anderson.
Podiam despachar, dispensar, alugar, revender, trespassar, fuzilar, uma série de jogadores. Mas não. Foi o Anderson. No ano passado, Diego (e o Hugo). Agora o Anderson. Acho bem que os meus amigos sportinguistas festejem a saída de Nani. Mas a de Anderson eu não sou capaz de festejar. Nem me apetece lembrar o assunto. Só falta agora Quaresma sair para o Real.
P.S. - Sim, foram 30 milhões de euros. Olha que contente que eu fico.
[FJV]

Autoria e outros dados (tags, etc)

...

por FJV, em 31.05.07
||| Chávez, o socialismo do século XXI.
Eu não li, mas a Sofia Galvão tomou nota do assunto. Boaventura de Sousa Santos festejou (na edição de 24 de Maio da revista Visão) o socialismo do século XXI do comandante Hugo Chávez: «(…) em 2005, o Presidente da Venezuela colocou na agenda política o objectivo de construir ‘o socialismo do século XXI’.» Os «socialismos do séc. XXI» , entre os quais o venezuelano, «terão em comum reconhecerem-se na definição de socialismo como democracia sem fim». Agradecemos penhoradamente ao Prof. Boaventura Sousa Santos essa profissão de fé tão devastadora. Ficámos definitivamente esclarecidos. Para nunca mais.
[FJV]

Autoria e outros dados (tags, etc)

...

por FJV, em 30.05.07
||| Erros ortográficos (A Corporação), 3.
Há uma razão para, no post anterior, eu ter enumerado os cidadãos, os eleitores, os encarregados de educação, os professores, «a comunidade educativa». Ontem, na lista de comentários a esta notícia do Público, havia leitores que se insurgiam contra os que estavam sempre do contra. Creio que, em breve, vamos ter a ortografia sujeita a plebiscito e os enunciados de exames a depender de uma comissão parlamentar. Chegámos a um ponto terrível de perversão do debate de matérias educativas: quem contesta um método de avaliação (mesmo que seja tão polémico como este) é julgado politicamente, rotulado de «oposição», executado como traidor. Assim vai o ressentimento dos medíocres.
[FJV]

Autoria e outros dados (tags, etc)

...

por FJV, em 30.05.07
||| Erros ortográficos (A Corporação), 2.
No estado em que as coisas estão, eu aceito quase tudo. Sempre me fez confusão haver níveis destes, separados e bem delimitados: de um lado, a ortografia, do outro a sintaxe, do outro «a adequação» ou «a interpretação». A questão é saber se as pessoas (os cidadãos, os eleitores, os encarregados de educação, os professores, «a comunidade educativa») querem que os alunos saiam da escola a produzirem abundância de erros ortográficos, ou seja, se os erros ortográficos não têm importância nenhuma -- ou se têm. Não entendo como os alunos podem mostrar «que compreenderam» um texto, explicando-o através de uma amostra de erros ortográficos. Sempre pensei que escrever mal era pensar mal, interpretar mal, explicar mal. Portanto, abreviando e simplificando, um aluno pode dar erros ortográficos desde que tenha percebido o essencial do texto que comenta. Numa fase posterior, pede-se-lhe: «Então, criancinha, agora escreve aí um texto sem erros ortográficos.» E ela escreve, escreve.
Aqui, Feytor Pinto, presidente da Associação de Professores de Português, tem razão: se o que estava em causa era aferir a «competência interpretativa», então «mais valia optar pelo modelo da escolha múltipla», o chamado «teste americano». As crianças não davam erros ortográficos e não se discutia se deviam, ou não, ser penalizadas por isso. Obrigar um professor a deixar passar em branco os erros ortográficos é uma injustiça e um precedente grave.
[FJV]

Autoria e outros dados (tags, etc)

...

por FJV, em 30.05.07
||| Erros ortográficos (A Corporação), 1.
Escreve o João Gonçalves: «Fui ensinado a não dar erros ortográficos e a ser convenientemente castigado por os dar. Aliás, qualquer um de nós está sujeito a cometê-los. A diferença em relação aos novos monstros é que nós fomos treinados para os evitar, sem o peso da "pedagogia", da "pedopsiquiatria" e das "novas metodologias" em cima da cabeça.»
[FJV]

Autoria e outros dados (tags, etc)

...

por FJV, em 30.05.07

||| PRÉ-PUBLICAÇÃO: As Mulheres do Meu Pai, de José Eduardo Agualusa.


(Capítulo 1) [PARTE I]

(Capítulo 1) [PARTE II]

[FJV]

Autoria e outros dados (tags, etc)

...

por FJV, em 30.05.07
||| PRÉ-PUBLICAÇÃO: As Mulheres do Meu Pai, de José Eduardo Agualusa [Edição Dom Quixote].
(Capítulo 1)

Oncócua, Sul de Angola. [Leandro, a partir daqui começamos em página branca]
Domingo, 6 de novembro de 2005.


Acordei suspenso numa luz oblíqua. Sonhava com Laurentina. Ela conversava com o pai, o qual, vá-se lá saber porquê, tinha a cara do Nelson Mandela. Era o Nelson Mandela, e era o pai dela, e no meu sonho tudo isso parecia absolutamente natural. Estavam sentados ao redor duma mesa de madeira escura, numa cozinha idêntica em tudo à do meu apartamento na Lapa, em Lisboa. Sonhei também com uma frase. Acontece-me frequentemente. Eis a frase:
– De quantas verdades se faz uma mentira?
A luz, filtrada primeiro por uma rede muito fina, presa à janela, e uma outra vez pelo mosquiteiro, a envolver a cama, deslizava puríssima, numa torrente incrédula, contaminando a realidade com a sua própria descrença. Virei a cabeça e dei com o rosto de Karen. Dormia. A dormir Karen volta a ser jovem, como suponho que era antes da doença (da maldição).
Estamos em Oncócua, num pequeno posto médico gerido por uma organização não-governamental alemã. Oncócua, como tantas outras vilas de Angola, foi desenhada com largas avenidas, para ser no futuro uma grande cidade. O futuro, todavia, atrasou-se. Talvez nunca chegue. Levantei-me com cuidado e espreitei pela janela. Uma enorme montanha, com o formato de um cone perfeito, flutuava no horizonte. Duas mulheres mucubais avançavam sem ruído. A mulher mais alta não devia ter mais de 16 anos, cintura estreita, pulseiras coloridas nos finos pulsos dourados; lembrei-me, ao vê-la, de um verso de Ruy Duarte de Carvalho – os seios: frágeis acúleos na placa do peito. Ruy Duarte escreveu belos versos sobre os seios das meninas mucubais. Compreendo-o bem. Se eu fosse poeta não teria outro tema. A segunda mulher cobria o tronco com um pano verde e amarelo. Mancava um pouco.
– São bonitas, não são?...
Karen estava sentada na cama, o cabelo castanho em desalinho. Disse-lhe:
– Sonhei com a Laurentina...
– A sério? Isso é bom. As personagens começam a existir no momento em que nos aparecem em sonhos.
– No meu sonho ela era indiana. Uma rapariga de cabelo liso, olhos grandes, pele muito escura.
– Não pode ser. Talvez meio indiana, não te esqueças que o pai é português...
– O pai? Qual deles?...
– Boa pergunta. O Faustino Manso era luandense, mulato ou negro. O que a adoptou era português, e o biológico...
– Não pensámos nisso...
– Tens razão, não pensámos nisso. Quem diabo era o verdadeiro pai de Laurentina?...

(Mentiras primordiais.)

Fecho os olhos e no mesmo instante regresso à tarde em que a minha mãe morreu. O meu pai recebeu-me à porta do quarto:
– Ela está muito agitada – murmurou. Tenta acalmá-la.
Entrei. Vi-lhe os olhos acessos na penumbra:
– Filha.
Colocou-me na mão um envelope:
– Chamam-me. Tenho de ir. Isto é para ti, Laurentina. Perdoa-me...
Não voltou a falar. Mais tarde apareceu Mandume. Lembro-me de o ver ajoelhado aos pés da cama, segurando a mão da minha mãe. O meu pai, em pé, de costas para nós. O meu pai, ou melhor, o homem que até àquela tarde eu acreditava que fosse o meu pai. Está agora sentado diante de mim. Tem um rosto seco, anguloso, com as maçãs do rosto salientes. A cabeleira é farta, grisalha, penteada para trás. Deve ter ensaiado a pergunta noites a fio na solidão do seu quarto de viúvo:
– De quantas verdades se faz uma mentira?
Fica calado um momento, o olhar perdido em algum ponto atrás de mim, depois acrescenta com ênfase:
– Muitas, Laurentina, muitas! Uma mentira, para que funcione, há-de ser composta por muitas verdades.
Olhos brilhantes, húmidos. Sorri tristemente:
– Era uma boa mentira, a nossa, uma mentira composta por muitas verdades, e todas elas felizes. Por exemplo, o amor que Doroteia tinha por ti era realmente um amor de mãe. Tu sabes disso, não sabes?
Olho-o atordoada. Levanto-me e vou até à janela. Posso ver dali o pátio iluminado pelo sol. A figueira que salvei, há anos, tirando-a de uma pequena jarra quebrada, numa lixeira, e plantando-a num enorme vaso de barro, está a dar-se bem junto à enorme chaminé em tijolo que divide o pátio. Cresceu muito, e muito torta, como é próprio da natureza das figueiras. A buganvília, ao fundo, já perdeu todas as flores. Janeiro declina. Um mês mau para se morrer, mesmo em Lisboa, onde até no inverno surgem com frequência, desgarrados e sonolentos, como papoilas dispersas num campo de trigo, dois ou três esplêndidos dias de verão.
O meu pai teria gostado que eu fosse um rapaz. Até aos 12 anos, ignorando os protestos da minha mãe, comprava-me calções, e boinas, e jogava à bola comigo. Temos uma ligação muito forte. Tivemos sempre.
– A ilha, papá, como é o tempo em Moçambique, nesta época?
A pergunta não o surpreende. Julgo que se sente aliviado por poder mudar de assunto. Suspira. “Em Janeiro”, diz, “costuma fazer muito calor na ilha. O mar é de um verde luminoso, a água quente, filha, chega aos 35 graus, uma sopa de esmeraldas”. Tira uma moeda do bolso, “Lembras-te?”, eu lembro-me, claro. Seguro na moeda. Vinte reis. Está muito gasta, mas ainda assim consigo ler a data sem dificuldade: “1824”. O meu pai encontrou a moeda numa praia da ilha, no primeiro dia em que lá chegou, o mesmo em que conheceu a minha mãe. Doroteia fazia 15 anos; Dário, 49. Foi, portanto, a 18 de dezembro de 1973. Nasci dois anos depois. Penso nisto, no meu nascimento, e uma revolta súbita toma conta de mim. Tenho consciência de que a minha voz se torna mais aguda e de que estou a ponto de chorar. Não quero chorar[1]:
– Estou aqui a tentar compreender como é que vocês foram capazes de me esconder uma coisa dessas durante tantos anos! Podes explicar-me?...



[1] Choro muito. Choro no cinema, nos casamentos, choro a ler qualquer coisa, eu sei lá, O amor nos tempos da cólera. Comovem-me os desastres ou as alegrias de amor dos outros, mas não me lembro de ter chorado alguma vez em razão dos meus próprios desaires.


[FJV]

Autoria e outros dados (tags, etc)

...

por FJV, em 29.05.07
||| As Mulheres do Meu Pai, de José Eduardo Agualusa.















A partir de amanhã, neste blog, pré-publicação de As Mulheres do Meu Pai, o novo romance de José Eduardo Agualusa. Aí ao lado está a capa da edição portuguesa (a da edição brasileira, da Língua Geral, já foi mostrada aqui), desenho de Henrique Cayatte, edição Dom Quixote. O lançamento é a 20 de Junho, mas depois de amanhã, na Casa Fernando Pessoa -- durante os Livros do Desassossego, de Carlos Vaz Marques --, Agualusa falará do livro e lerá uma passagem.
[FJV]

Autoria e outros dados (tags, etc)

...

por FJV, em 29.05.07
||| Concurso.
A LPM abriu concurso para assessores de imprensa. O anúncio sai no próximo sábado no Expresso/Emprego, mas nada como ir adiantando trabalho. Em rigor, é mil vezes preferível que as coisas sejam assim, às claras e procurando o melhor do mercado. Mas não se esqueça o que o próprio Luís diz sobre a profissão.
[FJV]

Autoria e outros dados (tags, etc)

Tags:

...

por FJV, em 29.05.07
||| A corporação, 2.
O ministério da Educação esclareceu o assunto dos erros ortográficos. Segundo o director do Gabinete de Avaliação Educacional, «não faz sentido penalizar a incorrecção ortográfica na primeira parte, quando o que se pretende perceber é se o aluno compreendeu ou não o texto. Se uma dessas perguntas tiver zero porque tem um erro não conseguimos avaliar se o aluno percebeu o texto». Pessoalmente, compreendo o método, mas discordo dele; não por estar do contra, mas por pensar que não é a forma mais correcta de avaliar os problemas do ensino do Português. Sei que se trata de «uma técnica de avaliação»; mas não concordo com ela e tenho o direito de discuti-la. E acredito noutra coisa: que é preciso discutir estes assuntos, mesmo que os técnicos do ME nos achem ignorantes só por não concordarmos com o superior entendimento de S. Exas. Sem rancor. Mas o recado precisava de ser dado.
[FJV]

Autoria e outros dados (tags, etc)

...

por FJV, em 29.05.07
||| Hurra!
Os apoiantes do fantástico Chávez lançaram foguetes para assinalar o encerramento da RCTV. O país livrou-se de uma «televisão fascista». O TVES, canal de «serviço público» criado pelo próprio governo vem «desfascizar» a Venezuela. The revolution will not be televised.
[FJV]

Autoria e outros dados (tags, etc)

...

por FJV, em 29.05.07
||| A corporação.
Peço aos pacientes e benevolentes leitores que atentem nesta notícia extraordinária:
«Valeu tudo: tratar um sujeito como predicado, usar um "ç" em vez de dois "s", inventar palavras. O Gabinete de Avaliação Educacional (GAVE) do Ministério da Educação deu ordens para que nas primeiras partes das provas de aferição de Língua Portuguesa do 4.º e 6.º anos, os erros de construção gráfica, grafia ou de uso de convenções gráficas não fossem considerados. E valeu tudo menos saber escrever em português. Isso não deu pontos.»
Se era preciso um argumento para repensar totalmente o ensino do Português, não sei se vale a pena procurar mais. Mas uma pessoa fica cansada de dar exemplos. A corporação está bem defendida nos corredores do Ministério. Mas leiam, leiam.
[FJV]

Autoria e outros dados (tags, etc)

...

por FJV, em 29.05.07
||| Justiça.
O Supremo Tribunal de Justiça veio despachar que uma violação aos 13 anos é menos grave do que aos sete. Por isso, «critica também o tribunal de primeira instância por valorizar em demasia os crimes sexuais». Onde anda a Polícia de Intervenção quando precisamos dela?
[FJV]

Autoria e outros dados (tags, etc)

...

por FJV, em 29.05.07
||| Sinais.














Há quem pense que estamos diante da ameaça de um novo tipo de censura; ou que há cada vez mais ataques à privacidade, à «reserva individual»; ou que o Estado anda, simplesmente, a meter-se onde não é chamado; ou que há controle a mais sobre a vida dos cidadãos. Há, naturalmente, quem pense que não estamos «diante da ameaça de um novo tipo de censura», uma vez que as «denúncias» até são feitas publicamente; quem pense que se trata apenas de agilizar procedimentos por parte do Estado, «o que permite acesso a uma série de dados» que, «naturalmente», não serão cruzados.
Este debate é oportuno e os sinais que ele fornece são positivos, mesmo que -- num caso ou noutro -- possam ser injustos para alguns sectores da administração. Há anos ele seria impossível porque as pessoas davam pouco valor à sua liberdade e à sua «reserva individual»; encantados com a «modernização», os portugueses desinteressavam por todo o tipo de quebras de privacidade, da videovigilância nas auto-estradas à monitorização da vida familiar. O argumento mais imbecil de todos: quem não deve, não teme -- e a «reserva individual» é um assunto menor diante da necessidade de «reforçar o colectivo» ou de «melhorar o Estado».
Num longínquo texto dos anos oitenta, António Barreto chamava a atenção para o ambiente de liberdade em que vivíamos -- liberdade de imprensa, de reunião, de associação, mobilidade, etc. Mas lamentava o facto de não existirem «liberais» (esqueçam a denominação, que a mim me parece justa), no sentido em que a liberdade não existe sem pessoas que se interessem por ela. Hoje, só a existência desse debate já é útil e mostra que as pessoas estão atentas, que começam a prezar a sua liberdade e que -- em relação ao Estado e aos seus poderes -- já sabem desconfiar. Questionam a utilização que se pode fazer do cartão único, do acesso ao correio electrónico por parte das empresas fornecedoras de acesso à net ou por parte do Esatdo, da facturação detalhada de telemóveis, da videovigilância da Brisa, do manuseamento do cartão de contribuinte por grandes empresas que ainda estão associadas ao Estado ou que podem agir em bloco com ele, do cruzamento de dados de saúde na banca privada ou nos serviços públicos, da monitorização da nossa vida pelas grandes corporações, etc. Isso é estar um degrau acima. Um upgrade, se quiserem. Desconfiar não é crime; pelo contrário, a história dos direitos individuais e a história da liberdade ensinam que desconfiar é, mesmo, um dever.
[FJV]

Autoria e outros dados (tags, etc)

Pág. 1/8




Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.