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«Deplorar a religião é tão inútil quanto celebrá-la. Onde encontrar a transcendência? Temos as artes: Shakespeare, Bach e Michelangelo ainda bastam para a elite, mas não bastam para o povo. Javé, seja lá como for chamado, inclusive de Alá, não é a divindidade universal de um planeta que se encontra conectado por meio da informação instantânea; contudo, Javé permanece, em quase toda a parte. Jesus está mais próximo da universalidade, mas seus mil disfarces são tão desconcertantes que chegam a desafiar a coerência. Freud, o derradeiro profeta vitoriano ou eduardiano, subestimava Javé, Jesus e Maomé. Considerava-os quiméricos, e não via para eles grande futuro. Parece irónico que o maior dos génios judaicos (ao menos, desde Jesus) não tenha sido capaz de vislumbrar a força permanente de textos que não podem desaparecer: a Tanakh, o Novo Testamento, o Alcorão. Se me fizessem a célebre "pergunta da ilha deserta", eu seria obrigado a escolher Shakespeare, mas o mundo continua a afogar-se na onda sangrenta das escrituras, lidas ou não por ele. [...] Mas acontece que actualmente costumo despertar sobressaltado, às vezes entre a meia-noite e as duas horas da madrugada, porque tenho pesadelos em que Javé aparece na forma de vários seres, desde um Dr. Sigmund Freud que fuma charutos de Havana e se veste em estilo eduardiano, até ao Ancião sisudo e enérgico que consta do Livro de Daniel. Arrasto-me escada abaixo, melancólico e calado, e tomo chá com pão escuro enquanto leio passagens da Tanakh, excertos da Mishnah e do Talmude, bem como os textos perturbadores que constituem o Novo Testamento e A Cidade de Deus, de Agostinho. Em dados momentos, ao escrever este livro, só posso defender-me murmurando a máxima de Oscar Wilde, de que a vida é demasiado importante para ser levada a sério. Javé, lamento acrescentar, é por demais importante para ser ironizado, mesmo que a ironia possa parecer-lhe tão natural como o é para o príncipe Hamlet. [...] Prefiro mil vezes a ideia de William Blake -- "Pois que tudo o que vive é santo." -- ao Javé do Deuteronómio, obcecado pela própria santidade, mas nem o fervor de Blake nem a minha melancolia são capazes de afectar o anseio humano por transcendência. Buscamos a transcendência secular na arte, mas Shakespeare, o artista supremo, esquiva-se do sagrado, sabiamente cônscio dos limites da reinvenção do humano por ele efectuada. [...] A necessidade (ou ânsia) de transcendência talvez seja uma grande ignorância, mas sem ela estaremos propensos a nos tornarmos meras máquinas de entropia. Javé, presente e ausente, tem mais a ver com o fim da confiança do que com o fim da fé.»
«Você pensa na velhice, sente ela chegar? Ela vai chegando, vai se instalando aos poucos, tem umas coisinhas que você vai percebendo, uma mazelazinha ali que não tem jeito, é assim mesmo. Mas não estou me queixando, não. Você tem medo da morte? Medo não, mas quero distância [risos]. Acho que com saúde, fazendo as coisas direito, dá para viver um bocado mais. Gostaria de viver com saúde e imaginação, com vontade de criar coisas. Noventa e tantos anos e virando a noite por causa de uma música, um livro. Formidável. Posso morrer assim.»
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