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«Dizem que ofendo as pessoas. É um erro. Trato as pessoas como adultas. Critico-as. É tão incomum isso na nossa imprensa que as pessoas acham que é ofensa. Crítica não é raiva. É crítica. Às vezes é estúpida. O leitor que julgue. Acho que quem ofende os outros e os leitores é o jornalismo em cima do muro, que não quer contestar coisa alguma. Meu tom às vezes é sarcástico. Pode ser desagradável. Mas é, insisto, uma forma de respeito, ou, até, se quiserem, a irritação do amante rejeitado.» Paulo Francis
Há, evidentemente, uma resposta diplomática ao problema dos cartoons. E há, com uma ponderação sinistra, o debate deontológico (valia a pena publicar os cartoons?, os cartoons são maus?, os cartoons são bons?, há uma responsabilidade da imprensa no «uso da liberdade»?). E há outro debate em que as coisas não estão a ser ditas com clareza: o mundo em que a liberdade era um valor essencial está a chegar ao fim? Há por aí muitos apelos ao sacrifício em nome da ortodoxia religiosa, da conveniência do petróleo e da política real, dos negócios dinamarqueses, da equivalência moral, do direito à indignação muçulmana, da intocabilidade dos novos e dos velhos párias. Mas sobretudo, mesmo sem falar dos cartoons (que são uma merda, sim, mas que cuja taxa ofensiva é mínima), um apelo ao respeitinho. Ao respeitinho e ao controle. À vigilância, à punição e à censura do delito de opinião, à «contenção verbal e discursiva». Outros valores estão em causa: «Não nos incomodem com essa treta da liberdade.»
Não sei se estão a ver. O presidente Sampaio apelou claramente à denúncia, à delação e à espionagem sobre os cidadãos em nome do Fisco e ninguém protestou contra a inversão do ónus da prova. Vasco Pulido Valente dizia que não tinha visto um único sinal de desagrado acerca do «cartão de cidadão» que o governo quer impor (por acaso, que me lembre, fui um dos que escrevi contra a ideia) e de que, há tempos, ouvi José Lello (na TSF) tecer elogios ditirâmbicos como uma das grandes contribuições de Portugal para a modernidade. O primeiro-ministro afirma, ao Expresso, que a liberdade, no fim de contas, é prejudicial ao género humano, no que é seguido por bispos e outros pensadores delicados que se perguntam sobre se valeu a pena publicar os cartoons tendo em conta as consequências no mundo islâmico. Uma série de pessoas, para evitar falar do tema, lembra casos de censura cometidos «no Ocidente» contra os quais todos protestámos -- para que não se moleste agora a tranquilidade de Finsbury Park. Em Inglaterra, o sistema de saúde pode enviar funcionários a casa, para verificar se as pessoas estão a fumar. As escutas telefónicas são o lamaçal que se sabe e parece que não são apenas as «figuras públicas» que estão no alvo. Pouca gente se perguntou sobre o que custará, à nossa liberdade, o vasto número de acordos assinados com a Microsoft por parte do Estado português.
Estranhos sinais no ar. Há muita gente a pedir respeitinho; e agora não é só na humidade das sacristias ou dos gabinetes: é nos «fóruns» das rádios, nas «cartas dos leitores» e outras vigílias cívicas. O respeitinho, primeiro. Depois, o catálogo de pecados, de violações da decência e a lista das más companhias. Depois, vigorará apenas um sistema informático. Virá então a proibição de fumar, de beber e de escrever sobre religião. Uma comissão parlamentar há-de criar uma gramática do «politicamente permitido» para que nenhuma palavra ofenda o respeitinho das corporações ideológicas, profissionais e clericais. Vigiarão as anedotas e o riso. Tudo em nome dos valores. Estamos lixados com estes valores, estamos.
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