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Rentes de Carvalho em Estevais, Mogadouro.
A história de J. Rentes de Carvalho dava para dois bons volumes, mas só ele poderá contá-la. A nós, basta a alegria de saber que, aos 83 anos, é finalmente reconhecido pelos seus – mais pelos seus leitores do que pelos seus pares, que olham desconfiados para um português que viveu quase toda a sua vida na Holanda, onde os seus livros são bestsellers. E de que tratou nesses livros? Imagens, personagens, patifarias, mitos, manias, fragmentos de um país, Portugal, que frequentemente se esquece da sua certidão de nascimento. Depois de em 2012 ter recebido o Grande Prémio de Literatura Autobiográfica com Tempo Contado, é este ano distinguido com o Grande Prémio APE de Crónica (com Mazagran, textos da imprensa holandesa). Pelo meio, romances deliciosos como La Coca, Ernestina, Mentiras e Diamantes ou A Amante Holandesa. 83 anos de bilhete de identidade, é isso que são os seus livros. Na próxima terça-feira recebe, em Sintra, o Grande Prémio APE de Crónica.
Texto lido por J. Rentes de Carvalho em novembro de 2012,
na entrega do Grande Prémio APE de Literatura Autobiográfica:
«Os tolinhos. Os bufos. Os convencidos. Os pategos. Os membros e as suas esposas. Os amigos dum gajo que conhecemos há muito e não é sério. Os fanáticos. Os sinceros. Os que foram maoístas. As bruxas. Os inimigos do povo. As irmãs do Salazar. Os compadres. Os hesitantes. O senhor Pacheco do táxi, do aviário e da bomba da gasolina. Os que comem peixe à sexta-feira. Os sócios benfeitores da Associação dos Bombeiros Voluntários de Oliveira de Azeméis. O médico dos Raios-X. A ex-telefonista da ex-PIDE do antigo regime. O clarim de Caçadores 9. Os filhos do falecido Prof. Dr. Joaquim do Amaral Thorensen Perestrelo Owen Ricciotti Matoso Guedes de Crespo e Bombarral (Marquês de Leça, Irmão da Ordem Terceira, Diplomé des Palmes du Mérite Agricole). O maquinista do ‘Foguete’ que levou o Papa a Braga. Os heróis do mar. Os gloriosos combatentes anti-fascistas. Os gaseados de 1914-1918 (Flandres). A tia da D. Amália Rodrigues. O cauteleiro de Cinfães. Os moradores do terceiro andar do prédio nº 42 do Beco dos Capachinhos 1300-444 Lisboa. Os que só gostam de cerveja. O que comprou as calças do Gungunhana e as ofereceu depois ao Museu de Bragança, donde parece que foram roubadas na noite de 7 de Fevereiro de 1952. A mulher do filho do vizinho do Marcelo. As figuras prestigiosas da nossa política acompanhados (acompanhadas? era o que faltava!) das respectivas esposas. O emigrante que construiu aquela casa. Os visitantes do Jardim da Estrela. Os dez mais elegantes. Os calvos, os obesos, os deficientes motores, os invisuais, os diminuídos mentais - que é como quem diz: os carecas, os buchas, os aleijadinhos, os cegos, os tarados. Os manetas e os gagos. O locutor da Rádio Renascença. O bissexual que casou com a Maria João e na intimidade lhe chama Zé Maria. O senhor doutor que está quase a chegar, não falta nada. Os três da panelinha. Os três. Os que dizem trinta e três. A Trindade. O senhor Pimpim. Os que leram Marx. O reformado que pinta aguarelas e imita muito bem o barulho da água a ferver. O eléctrico dos Anjos. Os senhores guardas. As senhoras guardas. As gentes da autoridade. Os defensores da ordem. A mulher que fugiu ao marido alcoólico e se foi juntar com um cego que tem uma barraca em Chelas. Os tocadores de violoncelo. Os fascinados pelo destino do proletariado. Os holandeses anticolonialistas, vegetarianos, com casa no Algarve. O ex-ministro. A Rosa que gosta muito de crianças. Os enfermeiros. As calistas a domicílio. A menina do quiosque. O bispo de Aveiro. Você e eu.»
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