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Passam hoje 35 anos sobre a morte de Vitorino Nemésio (1901-1978). A data devia servir para, nas escolas portuguesas (por exemplo), relembrar o homem de letras, o notável poeta, o escritor, o mestre – e o autor do mais belo, completo e marcante romance português do século passado, Mau Tempo no Canal, um prodígio de beleza, paisagem, humanidade e gente desenhada com o talento inimitável de um grande autor. Se houvesse juízo e decência, a televisão pública já tinha produzido uma telenovela de primeira ordem a partir de Mau Tempo no Canal, com o cenário belíssimo do Faial (com a Horta de outrora, de sempre) e do canal do Pico e São Jorge, além dessa galeria de personagens inesquecíveis (a deslumbrante Margarida, os Clarks, os Dulmos, os Garcia, os Bana, os Peters, os baleeiros) desenhados com a perfeição de Nemésio. A grande arte de Nemésio e a sua obra mereciam gente com mais memória.
Mais isto, muito a propósito: vá à última página de Mau Tempo no Canal. Amanhã, às 19h25, completam-se 69 anos (21 de fevereiro de 1944) sobre o momento em que o escritor escreveu a última frase do livro. Está lá, anotado.
[Da coluna do Correio da Manhã]
A Concha
A minha casa é concha. Como os bichos
Segreguei-a de mim com paciência:
Fechada de marés, a sonhos e a lixos,
O horto e os muros só areia e ausência.
Minha casa sou eu e os meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.
E telhados de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta pelo vento, as salas frias.
A minha casa... Mas é outra a história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.
O Bicho Harmonioso (1938)
Noite, Matéria da Morte
Noite, matéria da morte,
Acostuma-me a ti;
Dispõe de sul a norte
A Barra que eu perdi.
O vaso de mistério
Que o dia apaga – põe-o
A mim cheio e evidente:
Coisas que são do sonho,
Que não as veja gente.
Meu sono cava, ó casta e sossegada,
Como se fosse a tua horta.
Na terra humana tudo pega,
Até silêncio!
Planta sossego à minha porta.
E cresça do sossego
Então minha alma nova,
Como a rosa, que é só decência e apego
A uma modesta cova.
Eu, Comovido a Oeste (1940)
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