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Melros nas oliveiras.

por FJV, em 07.02.11

Acho graça às mais altas auctoridades em matéria sociológica que, de repente, descobrem que a ideia que têm «da imprensa de referência» não coincide com o país, propriamente dito. Chego a isto por uma passagem do post do Henrique Raposo («Este tema não pode continuar a ser apenas do Correio da Manhã. Este tema tem de saltar para a imprensa dita de referência. Portugal não é um país de brandos costumes.») sobre a violência doméstica. Metade do país constitucional (estamos no século XIX, bem vistas as coisas, e tudo o que não passa no Chiado, na Havaneza, no Grémio, é como se não acontecesse), ou talvez mais, descobriu que não somos um país de brandos costumes. Ora, a questão é velha. Durante o regime do dr. Salazar não havia crimes na imprensa, a menos que os facínoras fossem mesmo facínoras; se não havia crimes, não havia páginas de crimes; se não havia páginas de crimes, não havia literatura policial. Os autores de policiais, portugueses, chamavam-se Ross Pynn, Frank Gold, Dick Haskins (Roussado Pinto, Fernando Campos, Andrade Albuquerque), por exemplo. O país constitucional (regeneradores, históricos, progressistas), por outro lado, abomina a violência. Os seus representantes nas cadeiras do pensamento, nas conferências de S. Vicente de Paula, do Casino ou do Grémio, atribuíam isso ao Correio da Manhã, esse albergue de suculentas cabidelas onde o sangue não coagulava de página para página, «que horror, é só sangue, que horror» — mesmo que fosse na casa ao lado. Quando se deu «o crime do Meia Culpa», algumas consciências desgrenharam o chinó mas só de passagem; era uma coisa de província, em Amarante, que horror, que horror, deve ser do vinho verde, lá onde há melros a saltitar de oliveira em oliveira, cotovias e cucos entre amendoeiras a florir, camponeses e comerciantes a jogar à bisca debaixo das pontes, com as famílias ao lado, a dar conta dos farnéis. Violência é na Espanha, que são sanguinários; crimes é na imprensa internacional — os nossos não têm categoria, só vêm no Correio da Manhã. Tiroteios em bairros problemáticos não são crimes, são explosões sociais; vizinhos esfaqueados, adolescentes baleados, maridos que matam mulheres no meio da rua a tiro de caçadeira ou à catanada, sogros que estouram a cabeça de ex-genros (foi anteontem, desculpem lá), ex-maridos que esventram ex-mulheres, miúdos do liceu que esquartejam miúdos de liceu, que horror, que horror, isso é do Correio da Manhã, a nossa imprensa fala de alta sociologia (essa mistura aprazível de socialismo com astrologia), de temas fracturantes, de beleza pura, de arquitectos que vão para o emprego e dividem o carro com uma médica e um psi, de bons alunos que sofrem de stress pré-escolar. E, no entanto, só no Verão, cerca de cinquenta homicídios varreram o país, com as mais altas auctoridades de sociologia em férias, tratando por epifenómenos toda essa bandalheira, reservando a violência doméstica para o capítulo dos crimes políticos, cometidos por facínoras da Legião Estrangeira que retalham esposas na alcova nupcial. O pai que mata o filho com uma caçadeira comprada a uns bandoleiros de Idanha-a-Nova, o marido que vai à feira de Boticas aprazar uma pistola para desfazer o cunhado que está a chegar de França, o marido abandonado que vai esperar a ex-mulher à travessa nas traseiras de casa e depois mete o cadáver no porta-bagagem e o rega com ácido num descampado. Isto não lhes interessa? A mim também não. Os sociólogos do constitucionalismo, para manterem a sua estabilidade emocional em regra, preferem que os crimes de violência doméstica sejam politizados e que não apareçam nas páginas de crime, conspurcados e a meio gás. Acontece que os crimes de violência doméstica são o resultado desta pureza de sangue; casamentos que não se discutem, filhos a quem se permite tudo, mulheres trucidadas por famílias funcionais e por ideias disfuncionais, álcool a rodos (ai, a Direcção-Geral de Saúde!), falta de dinheiro, desemprego, emprego a mais, telenovelas, sangue na estrada, miséria no lar, mau sexo e maus hábitos, machismo mariola, machismo filho da puta transmitido de pais para filhos e de mães para filhos. Escusam de vir com o assunto para a primeira página, como se nunca lá tivesse estado e tivessem sido pioneiros – esteve, mas noutros jornais, ai que horror, que horror, é o Correio da Manhã, que horror. Há namorados que dão cargas de porrada a namoradas, para as educar desde cedo e as meterem na ordem logo no princípio – e elas não se revoltam nem lhes enfiam um balázio nos joelhos, aparecem com olhos negros e o cabelo a tapar nódoas negras. Há mulheres de meia idade que apanham surras e continuam a pagar as contas em casa. Há mulheres jovens que aceitam um estaladão e não respondem com um taco de basebol na virilha. Que horror, que horror, é a violência doméstica, vamos legislar contra a violência doméstica, que bom, e fazer mais duas comissões, e uma marcha de solidariedade, que bom, e mais uma lei, que bom, vai ser tão bom. Cumpram a lei (exijam que se cumpra a lei e que não façam dela uma excepção, mais uma, com alíneas e dúvidas e contratempos), envenenem os maridos que vos batem, castrem os namorados que vos tratam mal, abandonem os lares, deitem-lhes azeite a ferver por cima, ponham-lhes laxantes na sopa, chamem a polícia em altos gritos, exijam que os tribunais sejam mais rápidos, criem uma colónia penal cheia de mosquitos, façam macumba para eles ficarem sem tesão, troquem-lhes os medicamentos da hipertensão, eduquem as vossas filhas e ensinem-lhes a usar a inteligência e o varapau em doses idênticas — mas, sobretudo, não me venham com o nhe-nhe-nhem, nhe-nhe-nhem, e tal, e a violência doméstica, e vamos legislar. Sou pela acção directa: lei e prisão e nomes publicados no adro da igreja, e divórcio compulsivo e obrigatório. E não me venham com sociólogas e sociólogos que não sabem distinguir entre sadomaso e humilhação. E leiam o Correio da Manhã; está lá o país. Podem não gostar dele, está bem, mas foda-se.

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21 comentários

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De Aaa a 08.02.2011 às 11:23

Não esquecer Dennis Macshade (Dinis Machado).
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De Rosa a 08.02.2011 às 15:02

Bravo! É sempre muito bom ler suas verdades. Não tenho muito conhecimento sobre a acção do Estado nas sociedades pós-modernas, porém dá para considerar todas essas formas de violências, descritas no post , como o verdadeiro aspecto negativo dos micro-poderes apresentando suas forças destrutivas: desconsideradas pelas Ciências Sociais, melhor ainda, pela Sociologia e seus sociólogos, por assim, a mediocridade intelectual, considerar como senso comum, mas eis aí toda a verdade verdadeira da cruel realidade actual do caos social. Quanto ao Correio da Manhã é a leitura dele que recorro quando quero saber sobre o quotidiano da realidade nua e crua.
Gostem muito também foi da imagem do melro-preto na oliveira, lindo!
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De julia a 08.02.2011 às 15:40

Caro FJV:
Que "retrato" tão bem feito!...
É um tema que eu "estudo", visto conviver voluntariamente, com o problema social, que aqui dissecou .
A sua conclusão, seria a minha, mas sem o rico conteúdo de seus argumentos.Não será o medo de se exporem às críticas, quer de outrem, quer de si próprios?
Há quem se torne estúpido, assumindo formas e manifestações variadas...
Eu acho que a estupidez é essencialmente medo:
medo de si,
medo dos outros, medo da sociedade,
medo da precaridade,
medo de deixar de ser mãe...ou pai...
medo do preconceito, que para mim é, certamente, uma das formas mais notáveis da estupidez!...
Finalmente, onde estão as estruturas, no terreno?
Já agora, como "brinquei" com a estupidez, para comentar o vosso texto, vou interpelar-vos:
a forma mais dispendiosa da estupidez não será, possivelmente, a burocracia?
Até amanhã! Até sempre!
Júlia Príncipe
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De A. Taveira a 08.02.2011 às 15:53

Caro Francisco,
Não fora o povo, a comida e o vinho, e já diria que este não é o meu país. Como sempre importa educar o povo, de modo a que não seja o Francisco apelidado de extremista, pessimista ou facínora - ou como noutros tempos, fascista ...
Saudações, desPORTISTAS.
A. Taveira
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De Mónica a 08.02.2011 às 23:12

lê-lo aliviou-me um bocadinho o nojo e o desespero de assistir a isto. obrigada
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De henedina a 08.02.2011 às 23:27

A foto é sua?
Não deve ser pq é linda ;).
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De Manuel Queiroz a 09.02.2011 às 15:13

Grande, grande Francisco. Enormíssimo texto.
Manuel Queiroz
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De Ana a 09.02.2011 às 22:51

Quando estava bêbado, o meu avô batia na minha avó. Até ao dia, em que ela lhe encostou um machado aos testículos e disse: "se me tornas a tocar não te poderás fiar mais nem mim. Nunca mais podes dormir ou comer descansado". Foi quanto bastou. Mesmo perdido de bêbado, nunca mais lhe bateu.
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De jarra a 10.02.2011 às 23:00

Ah Francisco que já andava a ficar farto do tom das tuas crónicas, Pim!
Já que levaram a coisa pra o anti-machismo ficava agora bem uma a cascar nelas, só para equilibrar!
Gostei!
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De Inês Margarida a 12.02.2011 às 02:56

Foda-se , Francisco.
Deus te abençoe, rapaz.
E sabes que eu não digo isto todos os dias ( a parte do Deus te abençoe).
Valente texto. Exacta definição de sociologia.

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