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Para os tempos de crise, 4.

por FJV, em 25.11.09

Grandiloquentes, à esquerda e à direita. Ouvi-os durante uma vida inteira. Nos jornais, nas redacções, nas escadas, nas esplanadas. Hoje nada os separa senão a defesa do que resta, das tropas que ocupam a república e que têm relações com gente dos negócios — fazem-no com naturalidade. Sem dificuldade aparente. Sem remorso. Sem vida. Mas sobretudo sem humor. Um dos meus melhores amigos de blog teve os seus tempos de Enver Hoxha, de Mao, de revolução cultural. Felizmente, manteve o humor. Soma, àquela nostalgia adolescente, o peso de um sinal da história; relembra as palavras essenciais: operariado, greve, mulheres, riso, humor. Encontramo-nos para falar de América Latina, das cervejas mexicanas, dos ditadores falhados, dos loucos que vivem em Caracas ou em Lima ou em Montevideu. Apaixonamo-nos pelos lugares da ficção, temos saudades do calor, temos saudades dos amigos. Votamos de maneira diferente, ele não tem remorso, não tem dificuldade, mas tem vida e humor. Tem mundo para lá dos ocupantes da República. Comovo-me. Ficamos dependurados de uma livraria no Chiado enquanto as pessoas passam, à entrada da noite. O mundo podia ter sido de outra maneira; podia ter sido pior, também, se houvesse menos liberdade. Às vezes há menos liberdade, o Estado é uma grande máquina devoradora, manda enrolar a meia dúzia de castanhas num papel higienizado. Já jantámos altas horas – eu terminava um romance que não acabava, e aproveitava-lhe as histórias, falávamos de Casablanca. «Como será ter uma casa em Casablanca?» Enver Hoxha, Mao, operariado, greve; o mundo mudou, mas o riso permanece. Os outros também, conheci-os com a mesma determinação e usando outro hemisfério do cérebro. Chegámos ao mesmo ponto vindos de sítios diferentes. Chegámos a um ponto em que vemos a república devorada pelas tropas ocupantes, por gente menor, por funcionários de cozinha. Ambos sabemos que a Albânia nunca existiu.

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